quarta-feira, 30 de março de 2016

AFORISMOS (39)

O paganismo é um modo não racional de entender o divino na natureza. Cada pulsão de seiva é sacramento; um salgueiro debruçado nas águas de um ribeiro é altar onde o vento, em jeito de homilia, explana uma doutrina; a paciência das pedras e das fragas é a paciência de Deus, quando se erguem fitando os seres humanos que passam por elas. Mas ninguém se atreve a perguntar-lhes sobre a sua forma de respirar a vida onde estão por amor.
Das aves podemos esperar  as surpresas do Criador: de um lado para o outro, voando ao Deus-dará, delas nunca sabemos quando nos presenteiam em bandos circulares de movimentos, imprevistos passos de dança!

Eduardo Aroso
Entre a cidade e o campo, 30-3-2016 
DO NOSSO TIMBRE

As vogais são a flor da Língua. As consoantes são o apoio lançando o som puro (vogais) e sustentando-o, do mesmo modo que o jogador de ténis-de-mesa impele a raquete que batendo na bola a projecta no espaço. A perfeição vocálica, qual harmonia da música, depende muito de um espaço de ressonância. Observamos que o palato humano tem uma configuração idêntica a uma abóbada de um templo, e no seu microcósmico funcionamento ensinam os professores de Canto que a utilização do palato é uma técnica fulcral.

Considerando geograficamente o assunto da ressonância podemos observar (escutar) o fenómeno, por exemplo, num desfiladeiro, ou entre terra mar, quando o som das ondas encontra espaços vários e aí ressoa, combinando-se também com outros sons da terra, sendo certo que espaços amplos tendem a prolongar o som.
Este, pela natureza dos objectos com os quais se cruza (e é claro também pela natureza do emissor) produz o timbre, um dos elementos essenciais da música, e que depende essencialmente da natureza dos materiais e do modo de obter o som. Ora, tal como as ondas ao longo da costa, em vários contornos, também as vogais emitem-se, prolongam-se, fluem e refluem, eventualmente mudando em subtis nuances o seu timbre. Assim tem sido ao longo de séculos, à imagem das “ondulações” do canto gregoriano nos claustros e abóbadas dos templos.

 Agora uma pergunta: o leitor já imaginou o que seria se todo o som produzido ao longo da nossa orla costeira de repente deixasse de se ouvir? Certamente notaríamos uma estranha sensação – fenómeno nunca sentido – da ausência do nosso som, do nosso timbre natural, realidade a que não damos atenção consciente no dia-a-dia, do mesmo modo que não sentimos directamente no equilíbrio do corpo os ininterruptos movimentos de rotação e de translação da Terra na sua divina marcha.

Eduardo Aroso,
2013


quarta-feira, 23 de março de 2016

 AS FACES DO MAL

As sombras que criamos acabam sempre, mais tarde ou mais cedo, por vir ter connosco, simplesmente para nos mostrarem os seus autores. O feitiço contra o feiticeiro sempre foi e será. Há ainda um outro tipo de sombras, mais diluídas, já nomeadas como vestindo colarinho branco, que parecem não ser ainda o bastante para mostrar que aquilo a que chamamos civilização gera muitos detritos, e que a sua quantidade começa a ser preocupante. Há uma outra reciclagem, subtil, trabalhosa e urgente, que é necessário fazer. Caso contrário, sufocaremos no poço estreito e lodoso da nossa ignorância.


Eduardo Aroso, 23-3-2016

sábado, 19 de março de 2016

IN MEMORIAM

As ausências não se devem arranhar
Nem se mitiga o desespero
Em clemências.
Oh, sophia dos mistérios
No labirinto do amor,
Já me segredaste
Esse ponto luminoso,
O pleno calor
De, um dia, o reencontro.

Eduardo Aroso
19-3-2016

terça-feira, 15 de março de 2016



Portugal passa pela Europa, mas não para aí. Quero dizer que não se estaca em Bruxelas ou não se detém em nenhuma Frankfurt a pedir esmola a um banco. A vocação é ir, voltar e recomeçar outra viagem. Guiar-se pela rosa-dos-ventos. Arribar ao porto de espera que há em cada povo e mostrar que Camões, como viu Agostinho da Silva, não queria tanto chegar a Calecut, mas à Ilha dos Amores, isto é, à vindoura idade fraterna.

Eduardo Aroso, 16-3-2016

quarta-feira, 2 de março de 2016

O QUE É O TRIBUNAL INTERNO DA VERDADE?

«Não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores; ser ele; não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento; no fim de todas as batalhas» (Agostinho da Silva) 

Por certo, o TIF não se assemelha aos tribunais civis, onde, em pessoas diferentes, há, pelo menos, a tríade formada pelo acusado, o advogado e o juiz. O TIF existe também antes dos tribunais civis, embora com o avanço da humanidade (leia-se consciência ética) ele possa funcionar cada vez melhor, a não ser que cada pessoa se queira enganar a si mesma no seu próprio julgamento. Assim, no TIF o acusado, supostamente infractor, é o juiz de si mesmo e a sua defesa está em não enganar a consciência, e não havendo verdades absolutas neste mundo tão imperfeito, essa límpida atitude é sempre a verdade pessoal, a que pode ser entendida e praticada. O sol que nos faz bem para a consolidação da vitamina D é o que toca a nossa pele e não o que aquece as escarpas ao meio-dia.
O TIF funciona também como conselho consultivo para tomar decisões mais ou menos importantes na vida de cada um, ou seja, “metabolizados” todos os tratados e leituras, ponderados todos os conhecimentos, ouvidos todos mestres, cada um se deve submeter ao TIF, cujas custas, dispensado o dinheiro, só pode ser a coragem de tomar a SUA atitude e não a de outros, por mais bem adornada que nos chegue. Mesmo quando, mais tarde, se conclua que o julgamento não foi o melhor, ainda assim se faz jus à expressão «aprende-se muito com os erros».

Eduardo Aroso

2-3-2016