domingo, 15 de dezembro de 2019


UM SALMO DE LÍRIOS

Ao poeta António Salvado 

Não se fatigam os lírios
De neles reunir a luz.
Passamos num chão desconhecido,
Imperfeitos para os tocar
Nem os olhos os recebem,
Onde já nem o corpo se curva
Nem as mãos para abençoar.
Finos cálices, recebem o melhor da terra
Outro mel para nos untar.
Tacteia a alma que busca, alheia dos sítios,
Ou fontes onde não sabe beber.

Silenciosa é a oferenda dos lírios,
Crescem em todas as presenças
Purificando a cor nas intenções.
Luz clara como a esperança
Para ocultar ainda
A plenitude do amor.

Natal de 2019
Eduardo Aroso



         SURSUM CORDA E A CELEBRAÇÃO DAS PRESENÇAS
                           V. Nova de Gaia, 14-12-2019

Os textos aos quais Bruno Santos deu o nome de Sursum Corda (Corações ao Alto), parecem querer trazer essa força indefinível, muito antes do anima e animus de Carl Jung ou de qualquer pulsão psicanalítica freudiana ou outra, força que provavelmente se invocava no ritual do cristianismo primeiro, sobretudo antes do século V.
 De que modo o autor nos convida e ele próprio oficia na sua escrita? Um pouco fora do habitual labirinto da dualidade, onde o mundo ocidental tanto se enfrenta e interiormente se degladia, e onde se pode inserir a ideia judaico-cristã de Bem e de Mal, que nos chega nebulosa pela nossa ignorância. O autor de Sursum Corda não podendo negar o conflito entre os extremos, busca o que se pode chamar também uma 3ª via. Ou seja, no movimento, Bruno Santos busca a espiral.
Textos do dia-a-dia onde, dentro do pragmatismo de muitos deles ressalta um certo imprevisto que pode surpreender os que esperam uma conclusão na atmosfera do «mainstream». Ou seja, há a atitude consciente de saída do habitual «pensamento que não pensa».
Em termos numerológico: o UM, vaga unidade, ou temas (teses) que vulgarmente não se tomam como deve ser; o DOIS, o autor, reconhecendo-a, ousa sair dessa dualidade «o inferno do mesmo» (como aponta Byung-Chul Han) e busca o TRÊS. E não parece fazê-lo como ousadia de síntese acbada de conhecimento/sabedoria dessa tríade, mas como acto criativo e por isso libertador do já citado  «pensamento que não pensa». Só por isto, vale a pena. O que importa é sair do labirinto.
Tomemos então SURSUM CORDA ou Corações ao Alto. Ajudemos a levantar o mundo.

V. Nova de Gaia, 14-12-2019
Eduardo Aroso

domingo, 8 de dezembro de 2019



A TERRA NÃO EMIGRA ©

Foram-se para o mundo
Como os dias
Que não se apanham mais.
Levaram o destino consigo,
Poucos móveis e muitas fotografias
Essas coisas estranhas que nas entranhas
Têm também o coração
Que bate para além do corpo…

A terra não emigra,
Corpo caridoso
Recebendo qualquer um de braços abertos.
O chão não emigra,
Porque se mantém no seu posto de vigia,
Ele que formou os ossos da infância
E está disposto a recebê-los já gastos.
Mas quando a fogueira ainda se acende
A terra dá flor com o aroma
Carregado sobre as lápides da memória.

Eduardo Aroso ©
6-12-2019

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU VIOLÊNCIA GENERICAMENTE UNIVERSAL?

Parece ousado o título deste texto, porque pode dar a impressão de quem o escreve diluir ou deslocar o problema, daquilo que, bem visível e próximo, nos choca diariamente. Todavia, uma reflexão mais profunda poderá buscar causas remotas no que o eminente filósofo Byung-Chul Han aborda em «Topologie der Gewalt» (Topologia da Violência), tradução e edição/Relógio d’Água, obra que deveria ser, no presente, (quase) obrigatória em muitas áreas de estudo. O autor faz uma análise em parâmetros muito abrangentes e progressivos, desde tempos mais recuados, passando na sociedade da era industrial, no capitalismo clássico, até aos tempos de hoje do «burnout». Em síntese, a violência passou de níveis externos para níveis internos, «mantém-se constante. Simplesmente se desloca para o interior. “A decapitação” na sociedade  da soberania, “ a deformação” na sociedade disciplinar e “ a depressão” na sociedade do rendimento são estádios da transformação topológica da violência. Sofre uma interiorização, torna-se mais psíquica e, nessa medida, invisibiliza-se».

Este tornar-se invisível – ou na linguagem popular o verniz e as boas aparências que não deixam de acoitar cargas tremendas prontas a explodir, de tal modo que nem sempre o detonador consegue escolher o local e o tempo mais propícios para o fazer! Sobre este movimento nefasto inerente à condição humana, Byung afirma ainda como chegou ao presente: «As execuções desenrolam-se em lugares aos quais a comunidade pública não tem acesso. A pena de morte deixa de ser um espectáculo. (…) O palco da violência sangrenta que caracteriza  a sociedade soberana, cede lugar a uma câmara de gás limpa e exangue, estranha ao olhar público. (…) executa-se como uma aniquilação surda e muda.» O autor alarga a sua visão do problema, referindo-se às forças do terrorismo que «também não agem em termos frontais, mas dispersam-se de forma viral e atuam de maneira insível» e «os vírus digitais, que se dedicam mais a infectar do que a atacar, quase não deixam rasto que indicie claramente o infractor».

A actualíssima síndrome do “burnout” é  «a relação tensa, de sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos. Do mesmo modo, o sujeito exausto e depressivo do rendimento atormenta-se a si mesmo. Está esgotado, farto de si mesmo, da guerra que trava consigo mesmo». Paradoxalmente, ao contrário do que seria suposto, há ainda a força tremenda que desemboca ou na violência sobre o outro, ou no suicídio, uma forma de violência contra si próprio, no interior para o interior.
  

Na opinião de certos autores, a violência está associada ao poder, parecendo, mais objectivado no espaço doméstico, porque escondido dos olhos da sociedade e da lei. Essa explosão leva-se a cabo não só pelo sujeito com mais força física, como pela intimidação, uma outra forma de violência mais lenta e branda, mas não menos cruel.
Todavia, Byung faz uma distinção: «enquanto o poder constrói um “continuum” de relações hierárquicas, a violência gera cortes e ruturas. (…) O poder caracteriza-se por juntar e encaixar, a transgressão e o delito, em contrapartida, definem a violência. O poder inclina-se sobre o outro até o submeter, até o encaixar. A violência inclina-se sobre o outro até o quebrar».

Nesta linha de pensamento, a interiorização desse mal estar terrível acaba numa tremenda fístula psíquica e emocional que, como é óbvio, rebenta mais facilmente no âmbito doméstico, essa mesma violência que, por exemplo, no mundo laboral já só pode agir como intimidação seja qual for a sua espécie. Se o patrão ou chefe hierárquico, age assim, não é por uma questão de (verdadeiro) poder, embora podendo valer-se da sua deturpação, mas porque é interiormente violento.

Eduardo Aroso
4-12-2019