terça-feira, 24 de março de 2020

POEMA DE TODOS NÓS

Nós, os metafóricos que sabemos
que da solidão caseira podemos construir uma nave
para viajar aos confins da possibilidade de enviar um sorriso;
nós, os que buscamos o som e a harmonia
- outras pepitas de ouro sem comparação;
nós, os que podemos desenhar a imagem,
plasmar a cor sem que ninguém a veja,
mas sentir a dor dos outros reflectida nas árvores,
esses espelhos altos que vemos agora da janela;
nós os que simplesmente fazemos sair do coração
uma flecha fraternal qual pássaro voando do ninho.
Nós
vamos desatar o nó que aperta o mundo.

Eduardo Aroso ©
Lua Nova, 24-3-2020

sexta-feira, 20 de março de 2020


CIRCUNSTÂNCIA

Quanto mais dentro de casa
mais adentro em mim.
A Besta é nossa, impossível
de se propagar aos anjos.

Mas haverá sempre amanhã,
porque todos os horizontes
são vagas de amor e esperança.
Entram, atravessando as paredes
infiltrando-se na luz dos candeeiros.

Eduardo Aroso

Equinócio da Primavera
20-3-2020

sexta-feira, 13 de março de 2020



O RISO DE CRONOS

À primeira vista poderíamos pensar que «o deus do tempo» estaria satisfeito com a oitava praga do Egipto que se cumpriu agora numa coisa pior do que um gafanhoto: um vírus vindo da China. Nem certamente lhe dá prazer a presente epidemia. O riso de Cronos (ou Saturno, protector dos filósofos e outros pensadores) é dirigido para várias gerações que, depois da Revolução Industrial, foram criando o absurdo «time is money». Começaram então a comprar e a vender o tempo como se fosse uma coisa natural da vida. Ora, «o tempo dá-o Deus de graça», como tantas vezes acentuava Agostinho da Silva. O que é natural no ser humano é TER ou SER tempo enquanto vivente neste mundo também sujeito ao espaço. Estar sujeito ao tempo, mas também dispor dele.
Os efeitos colaterais (ou não, porque como diz o povo «Deus escreve direito por linhas tortas), dada a situação de quarentena consequência do coronavírus, estão de um modo dir-se-ia paradoxal a levar-nos a meditar sobre a raiz do que é o tempo, assunto medular que há já milénios ocupou o pensamento helénico. «Ócio» significava, não a futilidade e a preguiça, mas onde havia intensa criação pessoal e reflexão sobre o ser único que é cada ser humano, alguns diriam “tempo íntimo”, hoje completamente banido na sociedade do “burnout”, a do tempo revoltado contra o próprio trabalhador que já não comanda nada.
Na oportunidade presente de rectificar esse conceito, ainda que numa situação de confinamento, milhares de pessoas trabalham em casa, através do computador ou no quintal (ainda há quintais e quintinhas), muitos outros talvez em tarefas atractivas que há muito esperam por realização. Enquanto isso, a estearina das duas velas acesas, economia e finanças, estão a chegar ao fim, as velas do tempo comprado e vendido, cujo preço terá que ser rectificado, sendo que perdas e ganhos haverá sempre.
Eduardo Aroso
12-3-2020

domingo, 8 de março de 2020



QUEM PODERÁ NEGAR?

Escutam o primeiro choro.
(O vento passa sem dar por isso).
E olham a boca aberta como um sol,
uns olhos, dois rebentos mimosos,
mais tarde frutos.
O milagre é que já têm mel!
A grande deusa tem as suas aias na Terra,
emissárias a que chamou mulheres.
Elas vinham vestidas de sombras
e dois braços, músculos fortes como o coração.
Mas pesavam menos nos pratos da balança.
Então a grande deusa universal
que detinha os mistérios do feminino
disse:
desvelem a essência para destronar o mundo.

 Eduardo Aroso ©
8 de Março de 2020


domingo, 1 de março de 2020

CORONAVÍRUS, O INFINITAMENTE PEQUENO E O INFINITAMENTE GRANDE
Protágoras disse que «o Homem é a medida de todas as coisas», afirmação que se propagou e distorceu durante séculos, mormente do período medieval ao Renascimento. Medida implica comparação, mas não necessariamente tida como um centro, ou «rei da Criação» como o ser humano se viria a intitular. Por completo desconhecimento, durante eras e eras – à parte tempestades e outros fenómenos naturais – os inimigos da espécie humana eram animais ferozes, alguns de grande porte, ou outros seres humanos na forma de exércitos inimigos. Mais tarde, a ciência permitiu a descoberta do infinitamente pequeno e do infinitamente grande.
A leitura de «A Estranha Ordem das Coisas» de António Damásio, ajuda a compreender a harmonia e a guerra dentro do nosso organismo. Mal sonharíamos no passado que minúsculos vírus e bactérias poderiam eliminar milhares de pessoas em todo o mundo, como se um exército se deslocasse rapidamente e por todos os lados. A medida de todas as coisas não é o centro de todas as coisas enquanto trono de superioridade. Se o infinitamente pequeno pode agir desta maneira, é muito provável que o infinitamente grande possa eliminar muitos terráqueos. A humildade e a soberba da humanidade passam, no presente, entre duas colunas que se chamam microscópio e telescópio.
Eduardo Aroso
1-3-2020

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