ADVENTUS
V
Ao artista Jorge Ulisses
Era também a sua natividade.
Moveu-a a mão que a vestiu
Dezembro 2022
Portugal universal; não o efémero que nos amarra como única realidade nos cárceres escuros onde mataram o Sonho. Poemas e textos, alguns publicados em livros e revistas impressos, outros em blogues e os dados a conhecer aqui, para o domínio público, seguindo o rumo da Criação: a obra nunca está definitivamente acabada.
ADVENTUS
V
Ao artista Jorge Ulisses
Dezembro 2022
«TALENT DE BIEN FAIRE»
Agosto 2022
A TERCEIRA (E ÚLTIMA) MORTE DE MIGUEL TORGA
No meu texto intitulado «A Segunda Morte de Miguel Torga»,
aqui publicado há cerca de dois anos, estava eu longe de imaginar que não seria
a última! No mundo onírico o poeta (que deixara o seu corpo físico em 17 de
janeiro de 1995) surgia-me triste por certos acontecimentos, mas com alguma
esperança. Mas desta vez não foi assim. Na noite anterior ao corte dos plátanos
do parque - por acaso ou não – tudo foi mais simples. Houve uma sintonia quase
imediata no encontro, pois da última vez não estávamos bem cientes da difícil
movimentação no mundo onírico.
Agora, o escritor foi directo: - Olhe amigo, não volto a descer de mais acima para ver cenas e figuras tristes. Fiquei sem respiração e disse: - mas, estimado poeta, agora que o seu rosto consta nos autocarros, que existe a Casa-Museu com seu nome, enfim… Deixei-o continuar: - Sabe uma coisa? As melhores recordações que trouxe para este mundo são aquelas vividas para lá do Marão e outras, é claro, de outras terras onde o povo ainda mantém alguma coisa de si, mas não se sabe até quando. E se em Portugal as cidades são labirintos e conflitos, as terras mais pequenas são desertos de abandono. É grande a diferença de uma camisa suada de alguém que anda de sol a sol, seja na terra ou em cima de um andaime, e a desses que só assinam decretos. Interrompi-o, com algum receio, dizendo que gostava do seu livro «Portugal», uma verdadeira geografia literária do país. O escritor, que nunca foi muito de risadas, manteve as faces imperturbáveis. Mas eu pude ler nos seus olhos o gosto que sentiu quando lhe falei nessa obra. Perguntei-lhe que imagem tem da cidade de Coimbra. - Olhe, é tal e qual o mito de Sísifo: quando alguém empurra algo para cima, logo outros deixam cair ou empurram mesmo para baixo! E não se passa disto. Por isso a cidade está como está.
Fizemos alguns segundos de puro silêncio. Despedi-me, dizendo que quer o poeta
acreditasse ou não em anjos, neste mundo os seus leitores seriam uma espécie de
anjos que guardariam a sua memória e a sua obra; os leitores, sim, e não tanto
os que pegam nalgumas palavras da obra que nunca leram para as bandeiras das
suas conveniências. Agora o poeta poderia assim partir definitivamente em paz
para os reinos celestiais.
Eduardo Aroso©
Equinócio de Outono, 2022
Passo na rua principal da urbe onde o Rei fundador da nacionalidade quis viver e ser sepultado. Cruzo a cidade que se fez pela vetusta universidade que tem as suas irmãs em Oxford, Pádua ou Salamanca. Passo junto às montras com exposições de cortiça; das lojas dos preços de um euro. Entro nas livrarias cheias de best-sellers geralmente de jornalistas americanos, de atraentes livros de gastronomia, ou de tácticas militares à mistura com os programas salvíficos de economia.
Passo pela Ferreira Borges como cão por vinha vindimada, mas
também sobre o inconsciente citadino que parece esperar por certa movimentação
de placas tectónicas de energias estagnadas. Atravesso a ponte e vou respirar
lá para os lados de Santa Clara. Onde estais vós ó filhos e filhas da Lusa Minerva
para acudir à cidade?!
Eduardo Aroso
GOSTO DOS POETAS
Agosto 2022
A RAINHA SANTA ISABEL E A MENSAGEM DE FERNANDO PESSOA
A Rainha Santa Isabel e Inês de Castro, duas
figuras femininas que, apesar de tão marcantes e representarem arquétipos
diferentes se tornaram míticas no verdadeiro sentido da palavra (pelas razões
que conhecemos) não constam na Mensagem pessoana. As razões cabem apenas ao
poeta, que não as explicitou (não tendo que o fazer), pelo que somente as podemos
conjecturar. Todavia, o poeta glosa D. Tareja (Teresa) mãe de D. Afonso
Henriques e D. Filipa de Lencastre mãe da Ínclita Geração. Ambas estão
respectivamente na raiz da 1ª e da 2ª dinastias, do Portugal-matriz,
interrompido em Alcácer-Quibir, logo dominado por Espanha e depois entrando numa
espécie de “clandestinidade” sobretudo na segunda metade da 4ª dinastia e na
subsequente república.
Seja como for tudo isto, as devidas honras (e devoção) que prestamos à Rainha Santa que instituiu oficialmente o Culto do Espírito Santo em Portugal, que transformou rosas em moedas de oiro para pagar aos operários da Igreja de Alenquer, não deixa de estar num admirável contraponto com a (feliz) iniciativa de, neste dias, haver uma Guarda de Honra no Panteão Nacional, Igreja Santa Cruz de Coimbra. Quanto à Guarda de Honra, que existe todo o ano na Igreja de Santa Clara, é feita por Anjos.
4-7-2022
Festas da Padroeira da Cidade de Coimbra
A Isaura F. E.
(na memória atravessando
a matéria e o tempo)
Até quando na ocidental praia
respiramos ainda o sonho rarefeito
pelo zimbório aberto da aventura?
Oh, triste contentamento descansar
tão-só na tatuagem das algas,
pois nada pode ser demanda
pela descarbonização das areias.
Eduardo Aroso ©
Solstício de Verão
Junho 2022
A FAKE-NEW DA MORTE DE FERNANDO PESSOA
Dizem que foi em Novembro no ano 35.
Sem televisão, anunciaram-na nos jornais.
Mais tarde levaram os ossos para os Jerónimos
Ou… talvez de um anónimo entre os mortais.
Anos depois vieram as cátedras pomposas
Como se fossem metódicos anatomistas
Dissecando do poeta as múltiplas personalidades
Quando era apenas uma grande alma de largas vistas.
O Fernando, antes de tudo, uma excelente Pessoa,
Que sabia inglês para dar, emprestar ou vender,
Disse-me aqui ao ouvido que isso da sua morte
Foi quando as fake-news começaram a aparecer…
Eduardo Aroso©
Véspera de 13-6-2022
LUÍS DE CAMÕES – ENTRE A FORÇA
DA GRAVIDADE E A FORÇA CELESTE
«E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando»
(Os Lusíadas, Canto I)
A gravidade é uma das leis da física que mais facilmente
entendemos desde os bancos da escola. A invenção do avião, não podendo anular
essa lei, trouxe contudo a possibilidade de nós escaparmos, por mais ou menos
tempo, a essa força que nos puxa para baixo. Segundo a ficção científica – que lentamente
sempre se vai tornando realidade – é possível viver cada vez mais tempo no
espaço.
Quando Camões se referiu à libertação da lei da Morte,
apontava a possibilidade do glorioso caminho que, num futuro talvez distante,
toda a humanidade pode trilhar. É evidente que não se trata de viver eternamente
no corpo, mas da construção por cada um de uma espécie de “corpo vital de
memória”. Construção ou libertação ultrapassando a não-memória ou a má-memória.
Milhares de seres humanos morrem diariamente ainda nestas condições não
realizadas. Raros se elevam, no tempo, nesse corpo ou auréola. Há também os que
fazem batota, ou seja, os Ícaros que julgam ter asas (ou as compram na
contrafação), que logo caem no chão derretidas pelo sol da verdade, no
julgamento da História. Nestes últimos tempos, nas comemorações do 10 de Junho da
velha Casa Lusitana, muitos Ícaros têm exibido a sua lapela, mas, ao invés dos
aviões, não criaram propulsão. Ícaro caiu no mar Egeu; os nossos caem na costa
atlântica ou mesmo em terra. As medalhas podem ficar. As asas, por serem de
cera, é que se vão derretendo…
Eduardo Aroso ©
PIETÀ
Senhora que estais no corpo macerado
de todas as mães deixando as suas casas,
crucificadas também pelos caminhos
árduos do desespero fugindo dos algozes.
Se os vossos filhos ficam, lá fica a vossa dor,
se vão convosco vai a súbita incerteza
embebida em vinagre por pecados quais
dados em amargura neste tempo absurdo.
Pietà! Pietà! Vossos braços que tudo amparam
e se alongam tocando a vida e a morte.
Lágrimas assistindo impávidas na cruz
ao derradeiro calvário da civilização.
Latejam as horas como cravos
que vêm ao vosso regaço macerado
na espera ardente por um grito de aleluia!
Eduardo Aroso ©
Páscoa de 2022
Se Leonardo da Vinci captou, interiormente, o arquétipo da Última Ceia, vemos que todos estão do mesmo lado. Este pormenor é susceptível de ser bastante elucidativo. (1) Pese embora a chamada «doutrina social da Igreja», tema que para o presente caso não importa, ao contrário do que se geralmente se pensa de João XXIII, a reforma de “liberalização” da Igreja levada a cabo no seu pontificado, se trouxe comodidade à assembleia de fiéis, veio barrar o aspecto esotérico e iniciático da praxis cristã. Se não acabou, dificultou e dificulta cada vez mais essa via ao cristão, pois, por exemplo, o facto do sacerdote se posicionar voltado para a assembleia, obriga-o a estar de costas para o oriente, ponto cardeal para onde TODOS se voltavam, aliás a orientação tradicional dos templos cristãos. Fica porém a dúvida se a posição do sacerdote perante a assembleia teria (tem), ou não, como objectivo personificar nele a autoridade papal. Depois do Vaticano II continuará a haver, portanto, mais extremadas (mas não incompatíveis) a «Igreja de Pedro» e a «Igreja de João».
Um alto funcionário do Egipto disse, há já algumas décadas, que se o
Islão tem reforma, então já não é o Islão, o que, evidentemente, justifica a
existência do sufismo, como aliás a cabala no Judaísmo. Não se pode dizer o
mesmo de algo no Cristianismo?
(1) Há, como é sabido, uma disposição outra que é
a da Távola Redonda que, para o caso, se insere noutro contexto.
Eduardo Aroso©
Semana Santa, 2022
TUDO FAZ SENTIDO de Julião Bernardes
Conheço o poeta Julião Bernardes há cerca de trinta anos,
do GRESFOZ (Grupo de Estudos Figueira da Foz ), e recordo momentos
inesquecíveis, como aquele em que recebeu um prémio na Universidade de
Salamanca, cerimónia na qual estive presente. Assim, não fosse a exegética
abalizada do prefácio do Prof. José Fernando Tavares, a minha apreciação do
mais recente livro do autor poderia enfermar na confusão da amizade e da obra,
algo que aliás é frequente na pequena casa lusitana. J.F.T. alude a um livro
«pleno de densidade conceptual mas também de imagens inesperadas e não menos
densas na sua poética significação».
Logo aqui se
vislumbra uma poesia que não é desprovida de pensamento, mas também que as
palavras naturalmente expressivas na poesia têm profundidade ontológica. Ou
seja, a graça e a pura lírica, a agonia e o trágico da vida podem coexistir. Diz
ainda J.F.T. que «o recurso enunciativo que subjaz à expressão poética não
retira a esta o seu carácter filosófico». “Deixei
de ter saudade (palavra tão portuguesa; nem sei se haverá sentimento igual em
todo o mundo) – uma vez que a criei, vive permanentemente comigo, lado a lado,
é a outra metade de mim, completa-me e harmoniza-me” (J.B.). Ou em tom
aforístico: “Dorme no meu olhar, flor do
deserto./Vigio o teu sono”. O místico da sede constante de Deus, ou o poeta
da interrogação perene da palavra como revelação da existência e sobretudo do
ser, não têm descanso: “Interrogo a noite
para esclarecer o dia, enquanto o corpo descansa do peso do mundo”.
A leitura na íntegra de «Tudo Faz Sentido» (seda
PUBLICAÇÕES, 2020) conduz-nos àquela
imagem dos vasos comunicantes que, na totalidade, existe no interior do poeta.
Fica-nos a impressão clara de que Julião Bernardes não tem a preocupação (quiçá
objectivo, ainda que inconsciente, via de regra perseguido afanosamente por
quem pretende escrever um livro de poesia) de estremar poesia ou pensamento num
sentido mais estruturado já do domínio da filosofia. O que acontece é que a
poesia segue, seja no ritmo que o poeta lhe imprime, seja na ideia que pode
receber ou incorporar algum sopro de filosofia, mas – note-se – sempre que
aquilo que surge desta natureza não perturbe a poesia.
Eduardo Aroso
13-2-2022
DA POESIA
Com raras excepções, a poesia
contemporânea perdeu o sublime poder de invocar, de tal modo a haver
estremecimento, causar o «espanto»
naquele sentido que os gregos davam à sensação total (holos) perante o Cosmos, de
indescritível admiração eivada de algum medo, reflexo da própria pequenez
humana perante o ímpeto invocatório fosse aos deuses ou a terríveis forças
telúricas. Depois do romantismo alemão percebeu-se o corte da poesia com a
Natureza, bastaria ler os «Hinos à Noite» de Novalis. Entre nós, na «Oração ao
Pão – Oração à Luz» de Guerra Junqueiro, encontramos os últimos vestígios desse
estremecimento. Hoje, a ida à praia, por exemplo, é um acto biológico exterior
- ainda assim tonificante - cheio de saudade da perdida Natureza oculta.
A entoação, ou canto, que o hexâmetro grego provoca na leitura da «Ilíada», ou, de outro modo a cadência entoada em «Os Lusíadas», ou até em alguns poemas do modernismo brasileiro de Jorge de Lima, por certo já escasseia na poesia nova que, quantas vezes causando surpresa repentina e repleta de belas ironias e metáforas aladas e completamente imprevisíveis, pouco nos faz estremecer. O gosto pelo poema curto, ou pelo aforismo, muito embora nos surpreenda e possa mesmo encerrar uma sensação estética quase fulminante, seria como comparar um pequeno prelúdio musical que, podendo todavia ser uma obra rara, não pode alcançar a mesma atmosfera de uma sinfonia! Como diz Lamberto Maffei, o pensamento rápido – que hoje tomou conta da maior parte dos cérebros - «não apela à memória».
Bem pode Prometeo continuar a
ofertar-nos o fogo trazido dos deuses, servido na taça mais sedutora, com
sobremesa de ambrósia, que na era não só pensamento como do sentimento digital,
olhando ansiosamente o relógio, prefere-se o prato de “fast food”, que prepara
uma geração para eliminar sílabas de palavras, numa prática pavloviana por
dissílabos. Mas ainda há um resto fé nos versos de Gedeão, no seu grito poético
de optimismo ao «mundo que pula e avança/como bola colorida/entre as mãos de
uma criança».
20-1-2022
OS DEBATES TELEVISIVOS E A QUESTÃO QUE FALTA:
PORTUGAL
DEVERIA MUDAR DE NOME?!
Na esfera dos artistas, é frequente estes mudarem de nome, isto é,
sentem necessidade de adoptarem um outro mais ajustado ao que são. Num outro
âmbito, a questão poder-se-ia colocar para o nosso país. Já não somos o
Portugal do rei Fundador que, num gesto pioneiro de verdadeiro ecumenismo,
fazia pactos com chefes muçulmanos na perspectiva do lema «viver e deixar
viver»; nem do país do Rei-Lavrador que laborou mais pela Língua Portuguesa do
que qualquer governo dos últimos cem anos; porque também já não somos o
Portugal da Ínclita Geração, à qual têm sucedido algumas ímpias gerações; ou
mesmo do Portugal que ao fim de sessenta
anos resolveu não querer mais o jugo castelhano, gente do Interregno à qual
sucederam gerações que lá conseguiram resistir ao mapa cor-de-rosa e
posteriormente outras que se prestam a cobaias de manobras internacionalistas,
ao mesmo tempo que se envergonham do melhor da nossa gesta histórica, enquanto
alguns de fora a têm estudado com afinco. Pode-se dizer que uma das últimas
notáveis gerações foi a da Renascença Portuguesa (uma verdadeira elite cultural
que hoje é mal vista no mundo académico) bem como do nosso Modernismo.
Sufocados por cerca de um século de positivismo e nihilismo do Círculo de Viena
(1922-36) que instituiu o paradigma hoje vigente em toda a Europa, por cá, hoje
nos debates televisivos, chegámos à usurpação total dos nomes «Portugal» e «portugueses»,
como se fossem peças mecânicas de substituição rápida, onde a palavra educação
nem uma vez é mencionada no debate dos dirigentes dos dois maiores partidos
políticos.
Por tudo isto e do muito mais que se poderia dizer, é caso para
perguntar se, em abono da verdade, Portugal não deveria mudar de nome. Há quem
não goste de termos como «enigmático» ou «misterioso», admitindo que só a
visibilidade pelo sensorial pode explicar tudo. Contudo existe algo de profundo
e subtil que não sendo irracional também se furta a certo racionalismo, a
deduções de causas meramente eficientes e funcionais (termos tão gratos a
políticos e economistas do “mainstream”). O que há, firmado na lenta
estratificação histórica, é um nome do qual é difícil dar-se uma cisão total:
Portus Cale ou Porto do Graal.
Eduardo Aroso
14-1-2022