quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A TERCEIRA (E ÚLTIMA) MORTE DE MIGUEL TORGA

 

No meu texto intitulado «A Segunda Morte de Miguel Torga», aqui publicado há cerca de dois anos, estava eu longe de imaginar que não seria a última! No mundo onírico o poeta (que deixara o seu corpo físico em 17 de janeiro de 1995) surgia-me triste por certos acontecimentos, mas com alguma esperança. Mas desta vez não foi assim. Na noite anterior ao corte dos plátanos do parque - por acaso ou não – tudo foi mais simples. Houve uma sintonia quase imediata no encontro, pois da última vez não estávamos bem cientes da difícil movimentação no mundo onírico.

 Agora, o escritor foi directo: - Olhe amigo, não volto a descer de mais acima para ver cenas e figuras tristes. Fiquei sem respiração e disse: - mas, estimado poeta, agora que o seu rosto consta nos autocarros, que existe a Casa-Museu com seu nome, enfim… Deixei-o continuar: - Sabe uma coisa? As melhores recordações que trouxe para este mundo são aquelas vividas para lá do Marão e outras, é claro, de outras terras onde o povo ainda mantém alguma coisa de si, mas não se sabe até quando. E se em Portugal  as cidades são labirintos e conflitos, as terras mais pequenas são desertos de abandono. É grande a diferença de uma camisa suada de alguém que anda de sol a sol, seja na terra ou em cima de um andaime, e a desses que só assinam decretos. Interrompi-o, com algum receio, dizendo que gostava do seu livro «Portugal», uma verdadeira geografia literária do país. O escritor, que nunca foi muito de risadas, manteve as faces imperturbáveis. Mas eu pude ler nos seus olhos o gosto que sentiu quando lhe falei nessa obra. Perguntei-lhe que imagem tem da cidade de Coimbra. -  Olhe, é tal e qual o mito de Sísifo: quando alguém empurra algo para cima, logo outros deixam cair ou empurram mesmo para baixo! E não se passa disto. Por isso a cidade está como está.

Fizemos alguns segundos de puro silêncio.  Despedi-me, dizendo que quer o poeta acreditasse ou não em anjos, neste mundo os seus leitores seriam uma espécie de anjos que guardariam a sua memória e a sua obra; os leitores, sim, e não tanto os que pegam nalgumas palavras da obra que nunca leram para as bandeiras das suas conveniências. Agora o poeta poderia assim partir definitivamente em paz para os reinos celestiais.  

Eduardo Aroso©

Equinócio de Outono, 2022

 

 

 

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