sexta-feira, 31 de janeiro de 2020


LUAR DE JANEIRO©

Na aldeia que ainda existe
parece dar com mais nitidez
na porta das casas de cor fria
onde nada entra e apenas saem
fantasmas de solidão que não emigraram.
(As paredes tinham veias que secaram).
É um vai-e-vem todo o dia
das horas de sol
que não encontram ninguém  para aquecer.
Por isso as tardes sofrem e até a lua
na certeza da noite já não ter fogueira.
Quem me dera saber se o piar dos mochos
tira os mortos da eternidade
ou se é lamento de alguma promessa por pagar
do tempo em que havia «palavra de honra».
Ah, o suor do rosto, diamante da vida,
é guardado num sacrário perdido no tempo.
Dinheiro fácil - que aqui não se cultiva
é o dos mercados e agora parece um vestido de anjo
daqueles das crianças quando vão na procissão.
Por isso todos gostam e não estranham
tanta fé nessa adoração.
Este é o último dia do mês de Janeiro
e cada vez mais o luar que não tem parceiro
se esconde para não nos pôr a memória
em carne viva, todo o mês, o ano inteiro.

Eduardo Aroso©
31-1-2020




domingo, 19 de janeiro de 2020


D. SEBASTIÃO (20-1-1554)

«Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade»

Fernando Pessoa, Mensagem

D. Sebastião nasceu em Lisboa a 20 de Janeiro de 1554. Uma coincidência, ou não, com o santo do mesmo nome, que se celebra nesse dia. Quanto ao monarca português, desconhece-se onde morreu, se em França, num convento, como apontam alguns, se ficou cativo no Norte África. Mas o que a lenda consagra e relatos registam é que ninguém o viu morrer, e isso torna-se simbólico pela ideia que se incrustou no nosso inconsciente: a do Rei Desejado, desde a dinastia filipina até personagens tão distintas do século XX, como Fernando Pessoa ou José Cid, para não falar de certos intelectuais republicanos finisseculares que, embora não o confessando, não conseguem tirar isso da cabeça. Se por um lado, a espera criou uma atitude passiva nos destinos de Portugal, (hoje glosado por muitos como tema obscuro e anacrónico), de outro modo tem catapultado mentes criativas, numa espécie de ruminação interior sobre o nosso destino de nação, da qual o poeta de «Mensagem» escreveu que «… falta cumprir-se Portugal». D. Sebastião é o mito da Esperança. Significa, portanto, que o que quer que tenha sido interrompido em Alcácer-Quibir, no percurso da História de Portugal, é desejável que se retome, e é D. Sebastião (simbolicamente) e não outro rei entre outros, alguns de carisma bem reconhecido.  
Apesar de não vermos o lado oculto da lua nem por isso deixamos de a admirar pelas atractivas mudanças da sua luz. Aquilo que a História não regista (registou) se por um lado pode deixar alguma dúvida, mantém-nos em permanente fascínio para desvendar.

Eduardo Aroso
20-1-2020


AFORISMOS (52)
As catedrais góticas foram os mísseis mais eficazes lançados para o céu. Ainda hoje nos fazem estremecer na interrogação sobre o modo como foram pensados e erguidos.

Eduardo Aroso
18-01-2020

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020


O ESPLENDOR DA BARBÁRIE

Reveste-se hoje de formas várias e subtis. Não é o barbarismo de antanho, ainda que este não tenha desaparecido de todo e seja ele a referência a toda a hora em programas de televisão, o de golpes de faca ou de pistola. Atirar pessoas a um desfiladeiro é menos vulgar. Essa velha mas recalcitrante barbárie era a que ainda não tinha subido evolutivamente na espiral para formas mais harmoniosas de relação. A barbárie actual que se espalha como uma espécie de polinização, é aquela que se recusa, que mais ou menos conscientemente quer regredir, no desespero de tomar o poder em formas primitivas, ou em formas de hipnotismo fácil, mas que resulta. A que toma a arte e, em nome de certo futurismo, nos atola cada vez mais a sensibilidade para o Belo. A tal arte que - diz-se – nos faz pensar (!) ainda que dispense o estético, arte que geralmente atinge preços descomunais e que alguns municípios portugueses se alegram em mostrar como formas modernaças de progresso. Esplendor também assente em palavras como cooperação e lei, quando esta está feita com as alíneas que o cidadão pobre não entende. E não é menor o barbarismo do ensino onde, como alguém já disse, «se avalia mais o que o aluno não sabe do que aquilo que ele sabe», como se esse infinito de saberes que se estende para as galáxias coubesse no cérebro do mais inteligente dos seres.

Eduardo Aroso
 Janeiro de 2020

sábado, 11 de janeiro de 2020

NORTEAR-SE

Hoje andei por esses lados onde o Douro se entrega diariamente ao mar. Um destino que se funde noutro destino. E, salvo aquelas vizinhanças muito nossas que às vezes se arranham, Gaia e Porto são também um destino onde cada face contempla a outra. Urbes de forte pulsação anímica. Ambas as margens as vejo como dois ventrículos de um coração histórico, que quando o corpo da nação enfraquece lhe lançam mais sangue, e vêm por aí abaixo se necessário for, o que corrobora ou está no cerne da expressão tradicional do ideal de «não perder o norte». Portanto, sejam quais forem os problemas da vida, carago, não fique desnorteado! 

Eduardo Aroso
11-1-2020

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020


O (DES)VENTRE DA CIDADE

Dizer que a cidade tem sido desventrada não é grande exagero, pois não dá razão (antes desse) de um modo positivo ao verso de Camões «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», que se tornaram frouxas para mudanças. É certo que a  cidade conserva os ossos, sejam os do Fundador da Nação, sejam os do crânio herdeiro do «homo sapiens», que se conserva no cimo da colina onde Minerva, ora sopra inspiração, ora volta para férias no Mediterrâneo.
Os ossos, como é sabido, são os elementos do corpo físico mais difíceis de desintegrar; e ainda bem, porque a facilidade com que os sucessivos alcaides têm removido muitas vísceras da cidade, se o pudessem fazer quanto aos ossos, a urbe de séculos e séculos de História já não existiria, ou seria uma espécie de cidade da co-incineração como quis o tal personagem cujo nome ilude a designação de «homo sapiens».  A cidade vai vivendo, substituindo os órgãos naturais por outros de plástico, ou plastificados, e até – pasme-se – com um patético gosto por materiais de cortiça ou latas de conserva, nas artérias do corpo citadino, material que quase chega a entupir as vias. É óbvio que estas obstruções culturais ao perfil que a cidade deveria ter, não se resolvem com as cheias do Mondego que, com excepção de eventuais estragos, limpam tudo por onde passam.
Resta a peculiar atmosfera psíquica e anímica da urbe que, tal como os ossos, é sempre mais perene, constituindo uma espécie de réplica desses elementos duros. Inevitável é a pergunta: e ainda há então na cidade um «núcleo duro»? Uma coisa parece certa: temos que estar com atenção aos ossos da cidade e à extracção de certas vísceras… para que não seja embalsamada de vez.

Coimbra, 2-1-2020
Eduardo Aroso