segunda-feira, 11 de setembro de 2023

NATÁLIA CORREIA  «A ÚLTIMA ATLANTE»

 “… terá dito o Supremo Criador ao dar por feitas as nove ilhas que «pôs a jazer em vero ocidente»: «Nada mais fiz do que um ramo de flores escolhidas, só fornecendo o liame que as ata”. (…) A criança coroada beija o ceptro e com ele, no cortejo, vai abençoando a vida. A plenitude do Ser contra o precário do Estar». (Natália Correia, revista Cultura Portuguesa nº 1, 1981).

 «Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu

suspensa de mundos cintilantes pelas veias

metade fêmea metade mar como as sereias»

(Poesia Completa, Dom Quixote, 2000)

 

Para espanto de muitos puristas, a História tem mostrado que a vida de grandes seres revela traços (aparentemente) contraditórios ou paradoxais. Também as mais abalizadas teorias de arte, sobretudo depois de Hegel, não escondem uma tensão de contrários enquanto condição necessária para a criação. Pela simples observação, concluímos que no seu trânsito pelo mundo o ser humano, durante as fases da sua vida (geralmente de modo inconsciente) manifesta um determinado traço ou «modus vivendi» em detrimento de outro, todavia ambos nele existentes desde o nascimento.

Vem isto a propósito de Natália Correia que, não sendo contraditória (no que de mais profundo tem esta palavra) ao longo dos anos, através da sua escrita e intervenções cívicas, revelou corajosamente áreas de pensar e de sentir que no visível e até apreensível do dia a dia pareciam não ser coniventes. E se a escritora (a sempre inteira escritora) o fazia sem medo e na sua singularidade, tinha contudo o senso e o discernimento de o levar a efeito onde era mais adequado. Acutilante em nome da verdade. Algo diferente do que agora existe como «politicamente correcto», pois se hoje vivesse, decerto afrontaria tudo isso.

Perante isto pode perguntar-se se Natália Correia, a parlamentar ao tempo, que em jeito bocageano dirigiu um poema a um mais que conhecido hoje ex-deputado, ou a Natália do Botequim e de certos serões literários lisboetas, ou outros mais ou menos mundanos, se é a mesma Natália que escreve sobre o Culto do Divino, a Idade Feminina do Espírito Santo (na diferença desta época tão pródiga de pseudo-feminismos). Tudo isto águas do V Império, anunciado desde o Pe António Vieira a Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.

A resposta é sim e não. Ou melhor (o que não é bem a mesma coisa): não e sim. Desta maneira, da (aparente) negação se elimina ou resolve o contraditório para uma admirável síntese ou carisma que sempre foi a sua vida. Tanto pelas suas intervenções cívicas como pela sua poesia (pouco importa se nela há ou não heterodoxia e surrealismo) a poetisa e mulher tanto toca na carne humana hormonal e despida, como na face dos anjos ou na inefável essência do Divino do qual, em verdade, pouco se pode falar. O fumo do cigarro de Natália que se elevava ao lado de uma bebida espirituosa era também o incenso no ritual da sua alma mítica que tinha nascido das lavas vulcânicas das Ilhas Açorianas cujo equivalente espiritual só pode ser o ígneo Sopro do Divino.

Num artigo da revista Cultura Portuguesa, apontada em epígrafe, intitulado «O Lugar do Espírito», a vulcânica poetisa (ou poeta, como ela gostava) quiçá fazendo inveja a muitos teólogos e certos filósofos, exterioriza uma gnose que não se aprende em universidades, pois para além de ser filha das brumas do Atlântico, foi bafejada pelo Espírito que «sopra onde Lhe apraz». Poderia ter sido uma eremita, uma conventual meditativa dos Livros de Horas, uma mística recolhida escrevendo os seus diários. Todavia, de um modo  mais ou menos formal, mais ou menos mundano, optou dir-se-ia por um certo franciscanismo literário, socialmente corajoso (dir-se-ia até libertário) para dar testemunho da Terceira Idade ou do Espírito Santo, águas do V Império. Filha dessa lava incandescente, ela é mais mítica do que a mística no perigo do devaneio, porque nasceram consigo os arquétipos que fundaram a nossa cultura e a sustentam no presente e no futuro.

No culto do Espírito Santo, dada a sua natureza doutrinal, Natália encontra dois sentidos fundamentais: um é o vero sentido comunitário e o outro a dispensa eclesiástica de mediação com o Divino. Ouçamo-la: «os povoadores da Ordem de Cristo, e com eles os franciscanos, ambos credenciados pelo proselitismo da doutrina pentecostal, estimam nos Açores duas condições para ali edificarem o primeiro altar do Tempo que querem construir à escala planetária. A primeira é da forte implantação do municipalismo que se desenvolve, desde os alvores do povoamento, com grande vigor, no espaço açoriano. Estabelece-se, assim, um comunitarismo moral que age como dissolvente das diferenças sociais» (…) Necessariamente, este confronto do precário e do eterno em que a relação com o transcendente resgata o ser da humilhação que lhe é infligida pelo seu estar mitigado gera um estado de alma propenso a uma religião sem mediação eclesiástica».

E aqui se toca num dos pontos nevrálgicos da natureza do culto do Divino. Não significa isto “tratar Deus por tu”, mas dar um passo no tempo histórico, como o abade Joaquim de Flora o revelou no século XII.

 

Vésperas de 13 de Setembro de 2023,

100 anos depois do nascimento de Natália Correia

Eduardo Aroso ©