quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

EXORTAÇÃO SOBRE UMA CORDA DESAFINADA ENTRE ESPAÇO E TEMPO

(À tríade Alexandra Pinto Rebelo, Cynthia Taveira e Bruno Santos)

Portugueses em todo o mundo, uni-vos e estabelecei um novo padrão para espaço nenhum, podendo ser visível de outro modo. Uni-vos descendentes da «raça dos marinheiros», vós que sois formados na arte de não deixar erguer muros, peritos na engenharia de pontes de afecto duradouro que juntavam a margem branca com a outra escura, e que criastes o primeiro tratado de diplomacia do mundo chamado «Carta de Pêro Vaz de Caminha», vós que ainda alimentais estaleiros com a renda do sonho (o suor escorre para o telhado, pois quer olhar as estrelas…).  Desenrolai a corda que espera ansiosa e espiralada nos Painéis de Nuno Gonçalves, a corda sagrada, sinal de reconhecimento, e que é ave flamígera à espera de voar sobre os mares do tempo onde se desfazem os calendários civis como grades de prisão.
 Esperam-nos as naves do tempo, não sujeitas ao carburante dos mercados financeiros. Do tempo concreto, amoroso, como quem visita um familiar que se afastou há muito de nós ou o futuro, como quem idealiza a moradia bafejada pela natureza, onde o vigor solar e a ternura da lua entrem e saiam sem impostos obrigatórios. Portugueses de agora, sois de todos os tempos, deixai a fome da terra, e não mais vos alimenteis de sapos (engolir na altura de eleições é doloroso). É sábio não dar tanto valor à impermanência do registo civil. Largar, largar do porto chamado Agora, o ponto onde vos encontrardes, quer se apanhe bem ou não no Google, em qualquer ponto cardeal, onde haja ou não emigração.
 Os outros que têm carta de condução falsa para conduzir o mundo, são os timoratos do tempo, afogados no consumo. Larguemos então a viajar no tempo, sejamos de novo pioneiros, estabeleçamos protocolos duradouros e vantajosos com os extraterrestres, almas do outro mundo, como são aquelas da nossa devoção que ainda lembramos quando passamos nas aldeias pelas alminhas caiadas de branco, naves da nossa fé. Protocolos - sem o fastio mentiroso das assinaturas legais - com esses seres multiformes, verdes ou não, mas que são agora o que outrora foram outros irmãos de carne e osso, povoando outros continentes e outras ilhas. São eles que hoje nos podem instruir nas novas cartas de navegação, que dobram o tempo, que o fazem curvilíneo, como quem dobra, realiazado, uma curva depois de visitar o esplendor do Cabo de Sagres! 
Entrar e sair no tempo como quem entra e sai numa embarcação consoante o fluxo conveniente da maré. Dobremos a página dos «novos mundos ao mundo» por novos tempos ao tempo roto (com ou sem buracos-negros) do mundo, gasto, cheio de dívidas e juros, o tempo que não tem tempo de pagar a conta!
 Sejamos carne e alma, mas carne-viva, inflamada, que deite chama no pó frio que os mornos (vomitados, segundo o Apocalipse) foram amontoando. Para que assim os abutres sem pena (s) de ninguém possam ser afugentados pela Fénix que surge no horizonte como o sol largo e promissor num dia de Verão.

N.N.D.S.N.T.D.G. Eduardo Aroso, 18-1-2017




  

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017


PENSAR PORTUGUÊS – TEORIA E PRÁXIS

Não é difícil crer que os homens de Quinhentos tiveram escola quando se lançaram às Descobertas. Porém, havia como que uma disposição genética ou condição de missão, o realismo e o pragmatismo (nunca órfãos do sonho) que já levavam, conforme sublinha e explicita Afonso Botelho num escrito sobre o realismo dos Descobrimentos Portugueses, mas sobretudo a sabedoria de uma práxis posterior que, a dado momento, afrouxa e não se interroga. Porque esse saber de experiência feito requeria um (re)pensar de novo, um ciclo que teria que passar por um ensino académico humanista, científico ou outro, nunca erguido, como foi o padrão, por terras onde passava a aventura portuguesa; uma escola que continuasse Sagres e Lagos, fosse depois em Freixo de Espada-a-Cinta ou numa cidade com palmeiras e beija-flores, iniciando novo ciclo. Entendemos bem esta questão quando, por exemplo, notamos o ano em que o português, num gesto mais ou menos oficial, criou a primeira universidade por onde passou, quando a essa época já outras congéneres de povos ibéricos ganhavam patine nas suas pedras seculares.

Não substimando a teoria como corpo essencial – tão cara a Álvaro Ribeiro e tão admiravelmente explicitada – atrever-me-ia a dizer que um «pensar português» não pode estar todavia desvinculado de um «fazer português», quiçá este último estimule então a necessidade intrínseca de uma nova teoria, pois esta se constrói sobre si mesma, ao jeito de espirais. Se é certo que o ímpeto – o meramente compulsivo que se pode confundir com instinto – deve ser refreado pela intuição-sabedoria de saber «A Hora», não é menos desprezível que quem sente alento numa apaixonada práxis pode depois, ou em simultâneo, respigar teoria na própria práxis. Os antigos gregos quando morria alguém perguntavam se tinha vivido com paixão ou intensidade – tema que Herberto Helder traz a um belo poema seu – pois só isso, essa alma operativa pode levar a novas descobertas, a novas travessias, pois os mornos, como diz o Apocalipse, «são vomitados da boca». É possível «pensar português» sem amar Portugal?  

Hans-Georg Gadamer (1900-2002), o singular filósofo hermeneuta do séc XX, num capítulo intitulado «teoria, técnica, prática», discorrendo sobre os problemas da ciência diz que esta «poderá combater a crença supersticiosa de que ela consegue evitar ao indivíduo a responsabilidade pela sua própria decisão prática». Refere ainda Gadamer que Platão dizia, sem explicitá-lo, que «a liberdade quanto ao próprio saber-fazer outorga liberdade para adoptar outros pontos de vista da verdadeira «práxis», que vão além da competência do saber-fazer e representam aquilo que Platão chama a bondade».

A intensidade ou paixão, a que hoje poderíamos chamar talvez convicção profunda (os políticos de carreira chamam-lhe militância) pela qual os antigos helenos perguntavam, por certo para saber se teria sido uma vida bem aproveitada, não deve ser confundida com emoções mais ou menos efémeras ao sabor das modas e outras conveniências, mas com aquilo a que, num plano do pensamento, se denomina Ideal, sendo que todavia pode existir congelado, ou naquele calor de alma, o que «vale a pena», como disse Pessoa. Amar Portugal pode consubstanciar teoria e práxis, como se mostra nesta secção dos Painés de Nuno Gonçalves.

Eduardo Aroso

10-1-2017

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

INTERIORIDADES OU OS MITOS DA PORTUGUESA GESTAÇÃO DO TEMPO

«Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada»
(Fernando Pessoa, Mensagem)

«Vejo sair um fronteiro
Do Reino atrás da serra»
(Profecias do Bandarra de Trancoso)

Se outros não encontrássemos, bastariam Viriato e Bandarra. Menos importantes os dias de nascimento e mais duradouros os averbamentos na memória. Das terras onde as penedias e as urzes são santuários naturais e do céu onde as estrelas brilham dentro das trovas. Figuras que se foram transfigurando em auréola de mito, a desafiar a inteligibilidade das épocas e até o vazio positivista que, de tempos a tempos, provoca a fome do mistério da interrogação do que é ser português. Nucleares e historicamente magnéticos, à distância de séculos, são ainda apetecidos.

Preservação e expansão parecem corresponder a ideias de interioridade e periferia. O centro de uma circunferência, na sua máxima imobilidade, é susceptível de gerar inúmeras (infinitas) emanações. No Tao, a economia máxima reside no centro, pelo mínimo desgaste, o que no Cristianismo se pode entender pela Face sempre oculta do Criador, o Deus Abscôndito, o Absoluto onde tudo é possível. Pessoa chamou a esta paradoxal vida estática, a inacção, «a maior das ciências». Todavia, na manifestação sensível, o abandono (aparente) da paisagem, o doloroso vazio do despovoamento, são no entanto vórtices de energia que em pousio sustêm e dão equilíbrio à totalidade do país e da nação, pois as suas mais fundas nervuras são irrigadas por essa corrente subconsciente e subterrânea, alma da nossa gente, voz do povo, dragão alado ou Fénix sempre pronta a despertar em tempos de crise. Assim, é possível que um grito se faça ouvir, um clamor atávico como o de um moribundo que sabe que vai morrer e lança o último brado, que faça estremecer todas as aves e as penedias!

Ao inóspito que afasta e tantas vezes amedronta, Vergílio Godinho chamou «calcanhar do mundo», afinal onde o corpo se apoia. Se por vezes a morte vem, ou parece vir, negar a vida às interioridades ou úteros da terra, certo é que tudo pode recomeçar, tal no-lo diz o cântico de esperança do poeta António Salvado «Erro e progrido neste caos de fragas/onde parou alucinado o tempo».

Eduardo Aroso
Março de 2013