domingo, 23 de abril de 2017

A ESPECIFICAÇÃO DAS MARGENS
"O homem e a hora são um só» (Mensagem, Fernando Pessoa)

Entre os dois lados do tempo, no cimo de um muro que separava, cresceu um cravo, para ver se chegava ainda mais alto à liberdade. Mais acima - águia silenciosa - havia um homem que olhava. Podia chamar-se Destino, Ousadia, mas o nome civil era Salgueiro Maia. Hoje há o muro em paradoxo, de outro jeito. Uns atravessam-no, mas há quem o tema como de minério fosse, quando é a própria sombra. Hoje olhamos na vertical o cravo no gume do muro. Para que lado cresce?

Eduardo Aroso

23-4-2017

sexta-feira, 14 de abril de 2017

PÁSCOA E NATUREZA 

O êxodo nestes dias de Páscoa em busca de praias ou de itinerários serranos faz-nos pensar nas raízes portuguesas do nosso peculiar paganismo. Todavia, se por um lado é um acto natural, de outro modo este ímpeto actual repousa também numa crescente atitude turística dessacralizada. Não é de todo inviável a vivência pascal no abraçar a Natureza que nos desponta e brinda, isto é, fazer dela também um altar. Não parece ser todavia esta debandada de gente, assustada com o sagrado, a busca de um Paganismo superior como queria Fernando Pessoa. O impulso é mais um sintoma que contém algo de incrustado desespero de quem já fez uma cisão com a Natureza: pelo lado de dentro, com equivocado entendimento do lado de fora.
 O penúltimo capítulo da «História Secreta de Portugal» de António Telmo mostra o cenário que se nos oferece ver. Quem se senta numa esplanada à beira-mar parece não suportar já a sonoridade das ondas, as frases melódicas das gaivotas, em suma, a voz do mar entrelaçada com o vento, coisa agora de metereologia ou algo que pode trazer algum prejuízo aqui ou acolá numa plantação, se sopra mais forte. A música, de batida insistente e em subido volume, abafando mesmo as conversas, diz que o dono daquele espaço comercial, se assim não procedesse, a esplanada teria pouca ou nenhuma gente. O dito “stress” – ou uma estranha relação com a Natureza – não se desagarra das pessoas nesta via-sacra pagã. O espanto, face ao silêncio ou ao som da terra e do mar, deu lugar ao medo do silêncio.

Eduardo Aroso

(Páscoa de 2017)  

domingo, 9 de abril de 2017

Domingo de Ramos (in ilo tempore) ©

Dias antes já era uma azáfama, um louvar a Deus de preocupações e alegrias. O corte do loureiro e enfeitá-lo não era menos preocupação para os rapazes do que o lavar das casas para as mulheres. «A limpeza Deus a armou» diziam as mais velhas, e assim teria que ser para dali a dias receber o Senhor. Escova de aço nas mãos, sabão azul e os joelhos em penitência a lavar o sobrado. Os aspiradores eram naquele tempo ficção científica.
A maior altura do loureiro que os rapazes levavam era o record a alcançar. Mas quanto mais alto, mais peso, por isso os mais velhitos tinham vantagem. À porta da igreja tinham que os baixar para entrarem convenientemente; o entusiasmo era maior do que a altura! Estava ali a representação bíblica, à maneira da aldeia, de gente simples mas autêntica. Era a nossa entrada triunfal em Jerusalém. Lá dentro, alguns loureiros roçavam o tecto da igreja perante alguma preocupação do padre que começava a celebrar a missa, não fosse a pontareca de algum ramo  bater no azeite das lamparinas. Depois a água benta chegava a todo o lado no momento próprio. Quanto às mulheres, não tinham problemas, pois os raminhos que levavam quase cabiam debaixo das mantilhas.
À saída o entusiasmo não era menor do que aquele que tinha entrado uma hora antes. É que para o Domingo de Páscoa faltava uma semana e já se pensava no junco e no rosmaninho.

Eduardo Aroso ©

Domingo de Ramos, 2017

sábado, 8 de abril de 2017


PASCOAES – O ENCONTRO E A DISTÂNCIA ©

Desconhecido o convite,
Fui pelos meus sentidos
Para te observar as rugas
Que descem ainda do teu rosto
Escarpas perenes do Marão
Ao sol-posto.

O que persiste é a força da gravidade
Noite e dia sem descanso
A que os poetas chamam saudade.
Desconheço o convite
Para analisar as fontes,
Mas sei que as águas
São as primordiais
Que correm entre as duas margens do tempo
E que dispensam rastreio,
Pois basta nascer aqui
Para haver o mais sério juramento.

Belo é tudo acontecer
Na rebentação da terra
Até aos píncaros da serra
Onde as águias se reúnem
Ocultas
Livres do cumprimento de horários
Para atender à chamada.
Todas as esperas silenciosas
Fortificam o tutano da certeza
Em cada nova primavera.

7-4-2017
Eduardo Aroso ©