quarta-feira, 17 de novembro de 2021

 AVE(A)MOR

 

Estes são os dias da águia

de cumes e metamorfoses;

metabolismos da alma

voo maior das alturas.

De noite se abre as asas é Fénix

ave do segredo-transmutação

de folhas e emoções caídas.

Fitando o sol voa e não cega

e vê-nos atónitos de não saber

alheios ao além do azul sidério.

Nos penhascos do invisível

olha o que fica sempre em baixo

a senhora da liberdade e do mistério.

 

Eduardo Aroso ©

Lua Cheia de Novembro 2021

 

 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

 

MEMÓRIA DE DIÓGENES

 

Na morna lucidez deste Outono

percorri as ruas da cidade

sob um sol farto que nasceu para todos.

A lâmpada erguida no braço

anseio antigo de nitidez

nas grutas humanas da obscuridade.

 

Transbordava o meio-dia

escorrendo pelo reflexo das montras

e nas pedras gastas do chão

com desenhos de traça lusitana.

 

Ou a luz me cegava os olhos

ou já não havia madurez

de outros que se afirmava

num aperto de mão.

Nem a lâmpada minha escrava

me ajudava a cada passo

em todos os locais procurados.

Andei pelas ruas da cidade

e não encontrei o que queria

no meio de rostos encriptados.

 

Eduardo Aroso©

26-10-2021

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Os gritos de silêncio da paisagem social portuguesa, em alguns ferem-lhes mais a alma do que os ouvidos. Cripto-sonoridades porém inaudíveis aos alimentadores da “cavalgada do tigre”, aos imparáveis que se desvincularam completamente das melodias ternas e dos cantos vitais, marchas de forças telúricas e anímicas da nação. Ao contrário da grande arte que é a música, os silêncios forçados do Portugal de hoje não encontram a sua simetria na construção lúcida e duradoura como arquétipo, ou no arquétipo. Encontram, isso sim, como ruído (uma espécie de “travesti”) o que deveria ser, como queria Pascoaes, uma «Arte de Ser Português». Ruído feito das mais estranhas atonalidades político-sociais, de ritmos esquizopenetrantes de atitudes desfocadas dos responsáveis do país e da nação. Enfim, uma triste obra acabada do que se poderia chamar «desportugalização».

Eduardo Aroso ©

27-10-2021

(dia dos fumos da República)  

sábado, 16 de outubro de 2021

 

Estou saturado de sons electrificados, torcidos e distorcidos, farto de sons digitais e outros artificiais. Anseio pelo som acústico, esse quase aroma que nos envolve e que parece até transpirar quando a melodia se torna madura… Seduzem-me as «paisagens sonoras» de Murray Schafer, filtradas do ruído, para que num mundo que é hipnotizado pelo visual, haja centralidade no que deriva do Verbo como criação. Paisagem sonora que nos limpe da quase exclusividade do binário e nos devolva ou inspire o ternário. Tudo isto com uma pitada das arcadas sonoras renascentistas.

Eduardo Aroso©

16-10-2021

quinta-feira, 8 de julho de 2021

            DA  CISÃO E DO ESFORÇO NOS LIMITES

«Analisar intelectualmente um símbolo, é descascar uma cebola para encontrar a cebola». Pierre Emmanuel, «Considêration de l´extase».

É iminente o acto de chamar à poesia o que ela não é, quando deixa de ser o helénico espanto e arrebatamento, o sublime como queria Schiller, ou se perde o poder de invocar e fica apenas na evocação. Abraçada a tendência para o poema curto – o que, diga-se, numa época em que o tempo se compra e vende, aproxima o leitor da poesia – parece perder-se o fôlego do autêntico poema longo que, deixando de manter a tensão do início ao fim, fica uma quase insuportável adição de versos descritivos.

Se é certo que a contemporaneidade avançou prodigiosa nas metáforas sem receios e as multiplicou agradavelmente, não deixa de ser risco que essas asas possam ser as de Ícaro. Representar a angústia existencial (filha da cisão pensamento/representação) com outra angústia, a de uma poesia que perdeu todo o símbolo e se abalança na ironia sem medida, que descasca incessantemente a cebola para encontrar a cebola, parece ser, no caso, uma “homeopatia” que deixa tudo na mesma. Para isso também concorre o leitor que, tantas vezes, entende mais verdadeira a sua leitura do que a mensagem do próprio poeta, evitando entrar na aura da sua palavra. No tiro ao alvo da facilidade é sempre muito mais fácil acertar…

Não tanto a de um paraíso perdido, ou de Deus que, como disse Nietzsche «morreu dentro do Homem» - essa angústia é mais próxima, e talvez por isso doa mais; semelhante à de quem perde a mãe, esse ser tão próximo de nós em tudo: a Natureza esquecida que, aos fins-de-semana se procura na praia e nos espaços onde, em todo o caso, se troca olhar o azul para além do azul  ou escutar o ritmo das ondas por um telemóvel. Se a metáfora é um prodígio do nosso tempo, ela serve sempre ao seu criador, sendo propulsão da sua poesia. A diferença é sempre a de ser cosmos ou caos, a de lamber o húmus das primeiras rebentações da terra e, de cima, olhar o labirinto. A beleza e angústia do nosso tempo anda no fio da navalha, mas nada receia se o prodigioso voo da metáfora tem pára-quedas. E se não for para voltar, que ao menos, embora flutuando no longínquo espaço, possa ser encontrada nos liames do sentido.

Eduardo Aroso©

7-7-2021

 

    

quarta-feira, 9 de junho de 2021

RUMO


 O tempo é de bradar aos céus.

Árdua busca, fio do labirinto,

Onde somos silêncio

E a noite se fez em nós.

Por sobre as gáveas

Errantes do presente,

Solta ainda Camões a sua voz!

 

Eduardo Aroso ©

Junho 2021

quarta-feira, 2 de junho de 2021

DA MÚSICA (1)
Tal como a existência do automóvel é para nos levar a algum lado, ou o prato que recebe a comida que vamos ingerir, a matéria-prima da música feita de sons, silêncios, notas e figuras, é certamente algo (ainda que indispensável) que não parece constituir um fim em si mesmo, mas uma representação ainda que subtil e misteriosamente nos conduz a algum lado, que só pode ser ao nosso mundo interior de sentimentos e ideias. Se estremecemos escutando os primeiros acordes da 5ª sinfonia de Beethoven ou os compassos iniciais de «Assim falou Zaratustra» de Richard Strauss, falta saber ao certo se é (apenas) pelo efeito do som, ainda que organizado, se é por aquilo que interiormente desperta em nós. A situação do som enquanto música como um fim em si mesmo, colocar-se-ia numa situação (embora paradoxal) de, por exemplo, alguém a criar para não ser escutada…
Este tema em apreço, como é evidente, não se pode comparar à velha história de saber quem surgiu primeiro; se a galinha, se o ovo. No entanto, o enigma (para não lhe chamar mistério) não fica resolvido, pois sem a vibração sonora intermediária não seria possível ir mais longe no que quer que seja. Segundo os historiadores, Beethoven nos últimos anos da sua vida, ouvia claramente os sons dentro de si antes de serem tocados, pelo que se clarificou a ideia de dois tipos de percepção de som. O compositor disse que muitos cultivam a música – e certamente se referia a níveis de excelência – mas poucos podem receber a revelação dessa arte. Charles Ives, compositor americano, na busca de um sentido mais alto, chegou mesmo a desabafar: para que serve o som?!!
Eduardo Aroso
2-6-2021

sexta-feira, 21 de maio de 2021

MIGRAÇÕES

 

Há os que em refúgio instintivo emigram rumo ao passado. Outros saltam, heróicos, forçando as fronteiras do futuro. Dolorosa é a migração sem bússola de quem só tem o caminho do presente, dos sonhos bem ou mal vividos. Quanto à bagagem, levam apenas o que pode guardar memórias, porque a roupa confunde-se com o corpo. Vão sem margens, sem remos de apoio e até a mecânica dos barcos pode ser a maior traidora do destino. A água que os leva é neutra. Não sabem se essa água é o fogo do inferno ou as portas do paraíso (consoante o caso), mas objectivamente a viagem pode mostrar as goelas da morte. Pobres criaturas que estão nos antípodas de Deus que migra para todo o lado e nada Lhe acontece.

 

Eduardo Aroso

21-5-2021

 


quinta-feira, 13 de maio de 2021

A seara anuncia logo de manhã

a sua epifania ascensional.

Outro é o movimento das aves

no espaço para a conjugação

dos hinos festivos e suaves.

Eis a coroa de novas seivas

consentidas nas sementes.

Não há órfãos sobre a Terra

na luz vertida, a consolação.

Ergue-se o dia no sopro novo

e antigo da obíqua sarça ardente.

 

Eduardo Aroso©

11-5-2021


sexta-feira, 23 de abril de 2021

A CAVERNA DA NAÇÃO

 

Havia sombras nos corredores.

Moviam-se sem que entendessem

o que era para a frente e para trás.

Já quase ninguém sabia

a diferença entre novos e velhos

e muito menos da grande árvore genealógica.

Reflectiam-se então no jeito dos espelhos

e o tempo dava-lhes tudo… para nada.

Um dia os mais impacientes

acenderam umas fogueiras

à entrada da caverna.

Voltaram para dentro e sentaram-se

num lugar à parte dos outros

a desenhar um cartaz que dizia:

tendes a liberdade

de pensar quem sois.

Mas nenhum deles tinha visto o sol.

 

Eduardo Aroso©

Abril, 2021

 

domingo, 28 de março de 2021

A ÚNICA UTOPIA E O AVISO DE JOSÉ MARINHO (1904-1975)

 As ideologias políticas pertencem à esfera do materialismo dialéctico, mesmo aquelas que têm nos seus programas palavras como cristianismo, humanismo democrático, solidariedade e outras. Ainda que possam satisfazer uma ou duas gerações, são efémeras no cortejo da transitoriedade de Cronos, muito embora este nos grite para a necessária fruição do fluir do tempo. “As verdades” das ideologias (também, mas ainda ilusoriamente) podem existir em ciclos de tempo mais dilatados. Por isso, a única UTOPIA pela qual se deve lutar chama-se Deus, o Criador ou até o Grande Arquitecto do Universo, o «O Anónimo de Mil Nomes», como alguém disse.

Quando Nietzsche afirmou que «Deus morreu» decerto entrou e fez entrar muitos naquela faixa da humanidade que se colocou na trágica posição da qual José Marinho fala na sua obra maior e de mais difícil exegese, autêntico apocalipse do pensamento português: «Teoria do Ser e da Verdade». Nela, o autor coloca o problema da Cisão  entre imanente e transcendente, e, e se bem que ela não possa acontecer em absoluto, não deixa de colocar-nos o mais inquietante dilema do nosso tempo. Daí o agravamento do Mal – tema bem caro ao pensamento português, sobretudo desde Sampaio Bruno a Leonardo Coimbra e a António Telmo. É claro, porque realista, que poucos ainda poderão viver de acordo com «Não se perturbe o vosso coração. (…) Eu rogarei ao Pai, Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco e estará em vós» (João:14-16). Esta parece ser a Utopia Maior e para a qual a nossa utopia armilar começou a caminhar há mais de cinco séculos.

 Eduardo Aroso

26-3-2021

sexta-feira, 26 de março de 2021


AFORISMOS (56)

«SE ELES SE CALAREM, GRITARÃO AS PEDRAS» (Mt). Escrito há dois mil anos, derrama-se ainda hoje sobre o nosso tempo, como lava queimante na podre neutralidade conveniente que desafia a paciência de Cronos, esperando que outros resolvam. Esses que desconhecem que o grito das pedras é terrível.

Eduardo Aroso

26-3-2021 

 

 


domingo, 21 de março de 2021

 

Olha para a tua mão direita

E vê que por entre o nevoeiro

O Império futuro aí começa

O Quinto para ser o derradeiro.

 

Gesto será e vindo do Sonho

Em ânimo de Fénix reerguida.

Mas só a alma pode inflamar

A obra de Deus consentida.

 

Olha o céu amplo e redondo

Cada estrela símbolo e sinal,

Onde no silêncio do tempo

Há a Hora de ser Portugal.

 

Eduardo Aroso©

Equinócio de Março, 21-3-2021

sexta-feira, 12 de março de 2021


Rompem da inocência da terra

e atravessam a angústia do mundo

onde há sopros diversos, lanças em punho.

Não chegam ao céu, mas para ele se voltam. 


Eduardo Aroso©

12-3-2021

terça-feira, 2 de março de 2021

O SENTIDO DO PRÉMIO UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2021 AO POETA-CARDEAL D. JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA

Entre o elogio e o alerta - não só à vetusta Universidade de Coimbra como a outras - o agradecimento de Tolentino de Mendonça, verdadeira oração de sapiência (sapiência todavia como um despertador para uma sociedade sonolenta, viciada e viciante), parece rodear-se de um sentido simbólico que cai com rigor e grande necessidade sobre a cidade de Coimbra: a urgência de devolver a palavra aos poetas e aos humanistas, algo que na «cidade dos doutores» tem andado ausente. Todavia, pelo que se ouviu, Tolentino de Mendonça não tirou de um lado para colocar noutro, isto é, tomou a totalidade do saber fazendo a apologia de todo o conhecimento, desde ciência e tecnologia às humanidades e às artes. Todas cumprem a sua mais alta condição: a de estarem ao serviço do ser humano.

 A decisão da escolha do discurso laudatório (e brilhante que foi) sobre o homenageado, feito pelo Prof Dr. José Nascimento Costa da Faculdade de Medicina, coube por certo à organização, assunto que dispensa qualquer interferência externa. Todavia, apresenta-se-nos esse facto como algo a merecer alguma reflexão. Na verdade o apelo do cardeal-poeta às humanidades parece estar a “puxar” também pela história insigne da Faculdade de Letras de Coimbra, por onde passaram notáveis figuras nacionais e internacionais. O facto de não ter sido nenhum docente dessa faculdade a fazer a respectiva apresentação, não desmerece o que José Nascimento Costa disse do laureado que, como referi, se revestiu de muito cativante. Mau teria sido – se foi o caso – ter-se dado primazia à ciência para louvar um poeta, humanista e prelado.

As palavras de Tolentino de Mendonça ultrapassam os muros da universidade, vão até aos quatro cantos do mundo, e sendo que a vida da cidade de Coimbra vai também além da sua universidade, elas caem com fragor (como dizia Antero) sobre a cidade «mãe e madrasta». O autor de «Elogio da Sede» e «A Mística do Instante» veio também subtilmente (como um poeta o pode fazer) insistir para que se devolva a palavra aos filhos da urbe, os esquecidos da «madrasta», os que têm algo a dizer, os que possam ter atitudes dinâmicas sobre o bafio e as águas estagnadas que alagam a memória e as ideias para o futuro. Seria bom que os decisores de Coimbra aprendessem a lição que D. José Tolentino de Mendonça deu.

Eduardo Aroso

1-3-2021

 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

AFORISMOS (55)

Os espinhos da Rosa não são inimigos das mãos limpas, ou muralhas para a defesa da condição vegetal. Dotou-os a Natureza para dizer que a Rosa não se colhe gratuitamente. Imunidades do enigma.

Eduardo Aroso

23-2-2021 


sábado, 23 de janeiro de 2021

 

DA MÚSICA PARA GUITARRA PORTUGUESA de HUGO VASCO REIS

Diz M.P. Hall que a lira de Terpandro tinha 7 cordas e Pitágoras teria acrescentado outra, o que, na conclusão de uma oitava, abriria caminhos infinitos à música. A evolução da composição musical para um instrumento vai também, de certo modo, em maior ou menor grau, a par da evolução da organologia do próprio instrumento. Muito embora exista música contemporânea tomando instrumentos tradicionais (Ligeti e Stockhausen, por exemplo, escreveram para flauta de bisel), e ainda que o violino mantenha desde há séculos o mesmo número de cordas, seria algo anacrónico numa obra contemporânea para solista e orquestra utilizar-se um violino barroco. Ou o guitarrista Ricardo Rocha interpretar a sua música num instrumento do tempo de Armandinho (Lisboa), ou Carlos Paredes com uma guitarra de Flávio Rodrigues (Coimbra). Diz-se que Carlos Paredes tentou acrescentar uma outra corda aos seis pares existentes da guitarra portuguesa. Desconheço as razões da sua desistência. Nunca é de mais insistir no facto do timbre de um instrumento, aliado obviamente à natureza da música que com ele se cria, poder expressar o “espírito cultural de uma época”. Quando, por exemplo, ouvimos «António Marinheiro» ou «Mudar de Vida» de C. Paredes, identificamos uma fase da vida portuguesa, época essa que contém, com muita proximidade, o tempo de seu pai Artur Paredes, responsável pelo salto qualitativo do timbre da guitarra coimbrã que seu filho levaria ao cume. Em literatura sempre se disse que «o estilo é o Homem», ou seja, o escritor ele mesmo. Quando, sem ver, escutamos vários instrumentos é pelo timbre que os distinguimos, mas dentro desta singularidade podemos dizer que há timbres dentro de timbres, gerados também pelo modo de interpretar de cada músico e, num contexto actual, da engenharia electrónica. É minha convicção de que o salto qualitativo da composição para guitarra portuguesa, iniciando o ciclo pós-Paredes, deverá contemplar, a par de outros factores, alguma mínima que seja mudança da construção da guitarra portuguesa, tudo isto levantando questões tais como: é evolução da guitarra portuguesa (instrumento fortemente incrustado na alma do povo) seguir caminhos dentro da esfera do atonalismo mais ou menos académico? Ou assimilar e projectar-se como instrumento emparceirando com a chamada “música ligeira” mais ou menos rock ou jazística? Aquilo que Unanumo classificou num livro inteiro como «el casticismo» coloca-se legitimamente no nosso instrumento português, assunto vasto e complexo para ser aqui debatido. Mas, como disse Antonio Machado, “faz-se caminho, caminhando». Se aquilo que a breve prazo será futuro, com base na construção do presente, esse mesmo futuro se encarregará de colocar tudo no seu lugar. O que ele não perdoa é a quem não cria no presente, na possibilidade única, negando-lhe posteriormente o seu alimento de lento e implacável “metabolismo” de escolha.

Vem tudo isto a propósito da música que Hugo Vasco Reis (n. 1981) teve gentileza de me enviar em gravações CD, compositor-intérprete já com obra afirmada na guitarra portuguesa e outros instrumentos. Sempre que escuto música contemporânea (sendo que nesta existe todavia um vasto espectro) lembro-me de um episódio onde alguém teria perguntado a Picasso o porquê do artista ter desenhado dois olhos num rosto de perfil (A Mulher Sentada). O pintor respondeu, perguntando ao seu interlocutor, que se quisesse ler um romance em língua chinesa, do qual gostasse muito, e não houvesse tradução, o que faria. Resposta imediata: teria que aprender chinês! Eis a questão fulcral da música: a linguagem do compositor e de uma época. A este propósito, Fernando Lopes-Graça em «Introdução à Música Moderna» (Biblioteca Cosmos) escreve o seguinte: «a aceitação da música moderna * tem sido dificultada por uma razão bastante poderosa: a rapidez extraordinária da sua evolução, que não tem dado tempo a que as suas aquisições e inovações sucessivas sejam assimiladas pela maioria do público».

Numa das suas obras de estreia, a «Suite nº 1 para guitarra solo» (in Poema Anacrónico, 2013) Hugo Vasco Reis mostra logo um cunho pouco convencional que viria a imprimir à guitarra portuguesa. Muito embora a tenha tomado, diga-se do “modelo Paredes”, procura novíssimos timbres (sobretudo em «O Espaço da Sombra») a par de estruturas rítmicas e harmonias nada habituais deste instrumento português. Em «Linea (Música Experimental)» numa peça com arco, baqueta e prato, a guitarra entra no que se poderia chamar um máximo “jogo de contorcionismo”, isto é, livre para qualquer devir, um novo poder-ser. Assim, não se trata de aprender chinês, como no episódio de Picasso, mas, como noutras situações de outros compositores, entender (intuir) a sua linguagem; como vai o compositor no caminho, porque ir num caminho é para se chegar a um lugar. O compositor escolhe sempre o (seu) melhor caminho para chegar. Se o ouvinte gosta ou não, se demora pouco ou muito tempo a entender, isso é outro assunto, situação de que a música composta e ouvida numa mesma época nunca se livrou.

* Neste contexto, F. Lopes-Graça não coloca a questão da modernidade e contemporaneidade.

Eduardo Aroso©

Janeiro, 2021

sábado, 16 de janeiro de 2021

 

A SEGUNDA MORTE DE MIGUEL TORGA

Como em todas as noites, entrei no mundo onírico, esse que não nos rouba a vida, mas tira a memória das viagens. Às vezes, em jeito de confirmação, o sonho ilude nas imagens distorcidas. Porém, desta vez, recordo a nitidez e a intensidade de sentimento que existe nesse mundo, livre da inércia da matéria, lá onde a velocidade é a do pensamento. O primeiro ser que encontrei foi Miguel Torga. Nessa noite eu tinha relido «Portugal», uma exemplar aguarela literária do nosso país de cima abaixo, do  peculiar portuguesismo, como outro Miguel (de Unamuno) diria de Espanha no seu «casticismo».

Ao modo como o poeta tinha o seu semblante e a paisagem soberba que avistava, eu não podia fugir. Dirigi-me a ele, ansioso, ao mesmo tempo deslumbrado com tudo que via. Torga, nem me deu tempo de confessar a minha admiração pelo que me estava a acontecer, falou para mim como se eu fosse um vizinho de lá! Apressei-me a dizer-lhe que estava a ter um sonho consciente, e que portanto ainda estava por cá. Ele entendeu. O autor de «Contos da Montanha» estava em cima de uma grande fraga etérica, uma espécie de plasma, se é que posso descrever assim aquele maravilhoso rochedo, não alheio de todo ao duro granito quando Torga andava por Trás-os-Montes. Era, paradoxalmente, uma pedra com a mesma forma, mas leve e bela, muito embora com a mesma imponência do mineral da terra. O autor fitava o horizonte de onde se aproximava uma águia com asas reluzentes e solares. Disse-me, como quem informa alguém alheio a tudo aquilo, que lá tudo se movia. Sentir e pensar eram força sem obstáculos. Dessa maneira – atalhei eu – poderíamos ter e ver tudo o que quiséssemos! Replicou-me que não era bem assim, pois, tal como aqui, é a capacidade que dita a eficácia, e que o corpo que deixou era apenas uma sombra de um outro corpo.

De poucas palavras, como sempre foi, o poeta ficava-se a meditar e a olhar uma paisagem onde parecia que a noite não se formaria. E apesar de tanta leveza, o seu rosto era quase transparente e desfalecido, o que para mim não fazia sentido. Explicou-me que lá a intensidade do sentimento e do pensamento tudo vivifica ou amortece. Àquele que em 1995 deixou uma obra eivada de amor pela sua gente, pela sua pátria e pelo país, perguntei a razão da sua agonia. Não me surpreendeu muito o que me disse, ao mesmo tempo que eu sofria com o autor das obras «Diário» e «Poemas Ibéricos». O seu desânimo com o rumo do seu país era total perdendo oportunidades a cada dia. Dor com aqueles que lhe davam palmadinhas nas costas, que tudo faziam para tirar fotos na sua companhia e organizar homenagens, quase sempre sem que tivessem lido meia dúzia de páginas da sua obra. Mas o pior, o mais pungente era a cidade, como ela a via, desfigurada. Falei daquele seu verso, tão belo e de grande alcance, que bem caracteriza o nosso Povo: «mansa colmeia a que ninguém colhe o mel». Amargurou-se ainda mais. Afinal aquele “socialismo à portuguesa» era uma ilusão. Aquilo de deixar de produzir para comprar lá fora os produtos agrícolas, desesperava-o, ele que fora filho de agricultores. Abanava a cabeça quando eu lhe falei do ensino e do serviço nacional de saúde que ele vira nascer.

 Depois, quase já sem me ouvir, enrolado que estava pela dor, desabafava: - falharam em muita coisa, falharam. Por isso estou nesta agonia e já não tardo muito… Disse-me algo misterioso, como quem acreditava que brevemente seguiria um rumo mais alto para uma dimensão afastada de tudo isto, onde, deixada por fim tanta tristeza, só era possível sentir o bom, o belo e o verdadeiro. Todavia, ficando perplexo com as suas palavras «já não tardo muito…», perguntei-lhe afinal se essas memórias já não tinham morrido com o corpo de quem o tinha deixado desde o dia 17 de Janeiro de 1995. - Oh, não. Nem pense. Um dia também vai ver que a segunda morte é a mais dolorosa, é a pior. Depois é que tudo passa.

Eduardo Aroso©

Janeiro de 2021