DA MÚSICA PARA GUITARRA
PORTUGUESA de HUGO VASCO REIS
Diz M.P. Hall que a lira de Terpandro
tinha 7 cordas e Pitágoras teria acrescentado outra, o que, na conclusão de uma
oitava, abriria caminhos infinitos à música. A evolução da composição musical
para um instrumento vai também, de certo modo, em maior ou menor grau, a par da
evolução da organologia do próprio instrumento. Muito embora exista música
contemporânea tomando instrumentos tradicionais (Ligeti e Stockhausen, por
exemplo, escreveram para flauta de bisel), e ainda que o violino mantenha desde
há séculos o mesmo número de cordas, seria algo anacrónico numa obra
contemporânea para solista e orquestra utilizar-se um violino barroco. Ou o
guitarrista Ricardo Rocha interpretar a sua música num instrumento do tempo de
Armandinho (Lisboa), ou Carlos Paredes com uma guitarra de Flávio Rodrigues
(Coimbra). Diz-se que Carlos Paredes tentou acrescentar uma outra corda aos
seis pares existentes da guitarra portuguesa. Desconheço as razões da sua
desistência. Nunca é de mais insistir no facto do timbre de um instrumento,
aliado obviamente à natureza da música que com ele se cria, poder expressar o
“espírito cultural de uma época”. Quando, por exemplo, ouvimos «António
Marinheiro» ou «Mudar de Vida» de C. Paredes, identificamos uma fase da vida
portuguesa, época essa que contém, com muita proximidade, o tempo de seu pai
Artur Paredes, responsável pelo salto qualitativo do timbre da guitarra coimbrã
que seu filho levaria ao cume. Em literatura sempre se disse que «o estilo é o
Homem», ou seja, o escritor ele mesmo. Quando, sem ver, escutamos vários
instrumentos é pelo timbre que os distinguimos, mas dentro desta singularidade
podemos dizer que há timbres dentro de timbres, gerados também pelo modo de
interpretar de cada músico e, num contexto actual, da engenharia electrónica. É
minha convicção de que o salto qualitativo da composição para guitarra
portuguesa, iniciando o ciclo pós-Paredes, deverá contemplar, a par de outros
factores, alguma mínima que seja mudança da construção da guitarra portuguesa, tudo
isto levantando questões tais como: é evolução da guitarra portuguesa
(instrumento fortemente incrustado na alma do povo) seguir caminhos dentro da
esfera do atonalismo mais ou menos académico? Ou assimilar e projectar-se como
instrumento emparceirando com a chamada “música ligeira” mais ou menos rock ou
jazística? Aquilo que Unanumo classificou num livro inteiro como «el casticismo»
coloca-se legitimamente no nosso instrumento português, assunto vasto e
complexo para ser aqui debatido. Mas, como disse Antonio Machado, “faz-se
caminho, caminhando». Se aquilo que a breve prazo será futuro, com base na
construção do presente, esse mesmo futuro se encarregará de colocar tudo no seu
lugar. O que ele não perdoa é a quem não cria no presente, na possibilidade
única, negando-lhe posteriormente o seu alimento de lento e implacável “metabolismo”
de escolha.
Vem tudo isto a propósito da
música que Hugo Vasco Reis (n. 1981) teve gentileza de me enviar em gravações
CD, compositor-intérprete já com obra afirmada na guitarra portuguesa e outros
instrumentos. Sempre que escuto música contemporânea (sendo que nesta existe
todavia um vasto espectro) lembro-me de um episódio onde alguém teria perguntado
a Picasso o porquê do artista ter desenhado dois olhos num rosto de perfil (A
Mulher Sentada). O pintor respondeu, perguntando ao seu interlocutor, que se
quisesse ler um romance em língua chinesa, do qual gostasse muito, e não
houvesse tradução, o que faria. Resposta imediata: teria que aprender chinês!
Eis a questão fulcral da música: a linguagem do compositor e de uma época. A este
propósito, Fernando Lopes-Graça em «Introdução à Música Moderna» (Biblioteca
Cosmos) escreve o seguinte: «a aceitação da música moderna * tem sido
dificultada por uma razão bastante poderosa: a rapidez extraordinária da sua
evolução, que não tem dado tempo a que as suas aquisições e inovações
sucessivas sejam assimiladas pela maioria do público».
Numa das suas obras de estreia,
a «Suite nº 1 para guitarra solo» (in Poema Anacrónico, 2013) Hugo Vasco Reis mostra
logo um cunho pouco convencional que viria a imprimir à guitarra portuguesa. Muito
embora a tenha tomado, diga-se do “modelo Paredes”, procura novíssimos timbres
(sobretudo em «O Espaço da Sombra») a par de estruturas rítmicas e harmonias
nada habituais deste instrumento português. Em «Linea (Música Experimental)»
numa peça com arco, baqueta e prato, a guitarra entra no que se poderia chamar um
máximo “jogo de contorcionismo”, isto é, livre para qualquer devir, um novo
poder-ser. Assim, não se trata de aprender chinês, como no episódio de Picasso,
mas, como noutras situações de outros compositores, entender (intuir) a sua
linguagem; como vai o compositor no caminho, porque ir num caminho é para se
chegar a um lugar. O compositor escolhe sempre o (seu) melhor caminho para
chegar. Se o ouvinte gosta ou não, se demora pouco ou muito tempo a entender,
isso é outro assunto, situação de que a música composta e ouvida numa mesma
época nunca se livrou.
* Neste contexto, F. Lopes-Graça
não coloca a questão da modernidade e contemporaneidade.
Eduardo Aroso©
Janeiro, 2021
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