sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O MULTIPLICADOR

 
Ele reproduz-se,
ao contrário do verde dizimado,
e parece que só nos faz olhar para baixo.
Levou-nos a descobrir novas cavernas
algumas de Platão e muitas de betão.
O encontro é com o barro
e o fino pó deste mundo
que cria desertos sobre arranha-céus
e melancolias de silenciosas implosões.
 
Que fumo sairá das combustões da alma
sedenta ou da fala que procura outra fala
a face que busca outra face
sem teclas nem “copypaste”?
Inesperada reprodução, convite absoluto
ao tango duvidoso: da conquista
ou do passo exangue e mortal
na área de um salão com um metro e tal.
 
Eduardo Aroso ©
27-11-2020
 

 

domingo, 22 de novembro de 2020

SITUACIONISTAS E NEGACIONISTAS E (AINDA) O ESTREITO PENSAMENTO BINÁRIO

 

No drama Romeu e Julieta, digladiavam-se as famílias dos Montéquios e dos Capuletos, progenitores dos célebres amantes. Na tragédia da morte, apaziguaram-se as duas hostes. O que estava entre aquele ódio (por certo devido a interesses materiais e outros) era a verdade do amor, a existência única que poderia dissolver os antagonismos. No caso da actual pandemia dever-se-ia imaginar um outro amor, o de apurar as várias situações que vão surgindo no presente panorama, ao invés de se imitar o que se passa nos clubes de futebol: para o adepto de uma equipa, mesmo que esta perca, é sempre a melhor do mundo!

A covid19 existe cientificamente, como real, no aproveitamento do facto, é a defesa de interesses, organizados ou não. Imaginar que alguém, seja a opinião pública ou algum amigo ou conhecido possa situar/classificar uma pessoa no grupo dos situacionistas ou negacionistas, pode ser ligeiramente desagradável, ou mesmo traumático verificando-se uma reacção emocional forte de auto-estima. Para o «pensamento que pensa», que visa apurar o que parece certo ou errado, sem que tenha que exibir bandeira ou crachá, terá que se desenvencilhar do obstáculo que causa esse medo da opinião pública de o classificar como sendo de uma falange ou de outra. Tão grave como esse obstáculo é desencorajar o cidadão de saber o que é certo ou errado (que de certo modo é mais função dos especialistas no assunto), apresenta-se-nos o desencorajamento de indagar o que vai da teia dos interesses à demoníaca contra-informação.

Em tudo isto, a ideia do absurdo conceito «pós-verdade» funcionas às mil maravilhas.

 

Eduardo Aroso©

22-11-2020

 

 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

A DISSEMINAÇÃO DO PENSAMENTO BINÁRIO

 Esta insidiosa atitude mental dualista que invade a sociedade e cresce rapidamente nas televisões e redes sociais, gera de imediato a dificuldade de qualquer exame minucioso, sobretudo porque não há tempo nem abertura de espírito para uma terceira via. Nada do que aqui falo se refere ao que nos habituámos, como únicas verdades, do «não» ou do «sim», nem do próprio «nim» que pode ser – e quantas vezes - a completa ausência de reflexão. Quando um dia se aprofundar a evolução do ser humano nos efeitos da linguagem binária da informática ou mesmo da publicidade a toda a hora sobre o nosso inconsciente, é de prever resultados impensáveis, pois a estrutura binária do mundo da informática ainda esconde alguns enigmas a desvendar. A verificação da sua eficácia é fácil e imediata, mas não os efeitos que, a médio e longo prazo, possa ter no comportamento humano.

O reflexo deste padrão de pensamento binário no dia-a-dia observa-se de modo imediato nos textos e comentários do fb. Descontando a lamentável falta de educação de muitos utilizadores, a discordância, coisa incómoda para muitos, é, regra geral, tanto mais incómoda se bem fundamentada. A clarividência do eminente Byung-Chul Han mostra-o bem na sua obra «A Expulsão do Outro» (ed. Relógio de Água).

Nos debates televisivos, de modo dissimulado, há quase sempre uma espécie de falsas opções, que são apenas variantes do mesmo modelo ou sistema vigente visto na sua globalidade. Quando alguém ousa isso, é apelidado de extremista, ou outro “ista” qualquer, sem que, contudo, se negue o “extremismo militante” que sempre existiu. Toda a matéria que fuja a isto é afastada. Neste nível há outras atitudes semelhantes, como a de um certo «mainstream» da ciência que, seja qual for a razão, afasta do seu objecto (interesse) de estudo determinados temas, apelidando a quem os estuda de “não científico”. O «não há outra alternativa» continua vivo entre nós, encoberto no véu da hipocrisia sistémica que tem desterrado para longe os humanistas, artistas, pensadores, aqueles que sabem (sejam quais forem) e até a força da generosidade de pessoas simples, em favor de plutocratas, tecnocratas e agora de políticos populistas.

Quando, globalmente falando, o mundo rock e inúmeras variantes e géneros de música deste tipo baniram o compasso ternário (assunto ao qual voltarei) da quase totalidade das composições, obviamente se enredaram no binário e no quaternário (não deixando este de ser estrutura binária, apesar das acentuações), matéria esta bem analisada, por exemplo, por David Tame em «O Poder Oculto da Música» (editora Cultrix). Mas pior do que isso é o compasso unitário, de uma massacrante acentuação forte sem respiração e que muitos jovens utilizam como narcótico sonoro.

 

Eduardo Aroso ©

17-11-2020

 

domingo, 8 de novembro de 2020

 A IGREJA DE PEDRO (EXOTÉRICA), A IGREJA DE JOÃO (ESOTÉRICA) E OS SEUS MEANDROS OCULTOS EM PORTUGAL (Conclusão do texto anterior)

 

 Para além do que transparece dos Painéis de Nuno Gonçalves, encontramos indícios da Igreja de João na arquitectura e na literatura portuguesas, de que «Os Lusíadas» e «Mensagem» são bons exemplos, para além do que mais neles se pode ler. Um dos mais recentes acontecimentos, entre nós, terá sido o movimento da Renascença Portuguesa através da sua revista «A Águia». Na insistência do nome desta ave que fita o sol (agora temos a «Nova Águia») parece estar a resposta. O Apóstolo João é conotado com a águia. Observe-se, por exemplo, a frontaria da Sé Catedral de Viseu onde estão os quatro apóstolos (que correspondem aos 4 evangelhos canónicos) e onde vemos a águia junto a João.

 O que se tem buscado com o nome de Igreja Lusitana, à falta de outras fontes que legitimamente talvez se pudessem considerar, é susceptível de desde sempre ter existido nas influências mais ou menos alternantes destas duas vias essenciais do Cristianismo. Pela altíssima e peremptória afirmação de S. João no início do seu evangelho «No princípio era o Verbo (Logos)», o português começou, fosse como fosse, por escutá-lo no rumor do mar, no marulhar das ondas. Verbo como movimento e vida. Quem sabe se a arqueologia mais enigmática da fonética e do ritmo da língua portuguesa, em simbiose com o latim e outros idiomas influentes, se foi moldando singularmente nessa sonoridade oceânica. Pessoa, ao referir-se ao Rei-Lavrador (diríamos hoje Lavrador da cultura lusíada) escreve: «… E a fala dos pinhais, marulho obscuro,/É o som presente desse mar futuro,/É a voz da terra ansiando pelo mar». Sendo certo que entre os actos da Igreja de Pedro e a de João há a Única Mão, é árdua a tarefa de averiguar com clareza as suas as repercussões, nas diferenças, ao longo do tempo. Mas podemos pensá-la sob o emaranhado paradoxo português.

 

 Eduardo Aroso

23-10-2020

 

 

A IGREJA DE PEDRO (EXOTÉRICA), A IGREJA DE JOÃO (ESOTÉRICA) E OS SEUS MEANDROS OCULTOS EM PORTUGAL

 

A relação dos monarcas portugueses com a Santa Sé ao longo da História aconteceu ora numa aceitação sem vacilar, ora em atitude que, não negando a cristandade, escolhia outras vias que não as dos ditames exactos de Roma. D. João III querendo mesmo ser “mais papista que o Papa” (Inquisição) e D. Dinis que, num acto superior e inteligente do “desenrascar” lusitano, acolheu sabiamente os Templários, o mesmo é dizer aqueles que iriam preparar o «Projecto Áureo» - que a Europa não imaginava - e que contaria com os «fraticceli». Quiçá o primeiro exemplo audaz é de Afonso Henriques quando se arma cavaleiro em Zamora e logo começa a adiantar as coisas… Se mais sinais não houvesse destas relações (dir-se-ia alternantes da Igreja de Pedro e a de João) bastaria o que está no chamado Painel do Santo das Tábuas das Janelas Verdes, de Nuno Gonçalves, onde vemos o Livro sagrado aberto na primeira página do imortal Evangelho do Apóstolo Amado (João).


 Se atendermos ao «providencialismo histórico» - como no-lo descreve António Quadros em «Introdução à Filosofia da História» ou Agostinho da Silva em várias obras - não é difícil aceitar que, consoante a época e as circunstâncias, os reis tomassem atitudes dir-se-ia nem sempre dentro do mesmo cânone. Todavia – no dizer de Pessoa «o homem e a hora são um só» - é de crer que a Mão do Destino guiaria cada decisão da melhor maneira. Do mesmo modo se poderia chamar a este assunto os vários laços de consaguinidade de figuras proeminentes da corte portuguesa (reis alguns) que se foram estabelecendo com os pares de Espanha, quando a nação portuguesa sempre lutou contra a sua anexação a Castela. Os sempre enigmas do visível e do invisível. D. João IV tem um gesto singular ao depor a coroa real em Nossa Senhora da Conceição, continuando, deste modo, a nossa tradição do culto ao feminino na figura da Mãe de Jesus, gesto esse simbólico, nunca mais interrompido já depois da monarquia, prolongando-se em Fátima. Mas tudo isto leva a pensar se (depois da Expansão, da presença dos «fraticceli», do culto do Espírito Santo e de outros acontecimentos) o acto do primeiro rei da 4ª Dinastia representa a “entrega” definitiva, ou não, da Igreja de Pedro (e de um modo mais visível) na relação de Portugal com a Santa Sé.  


(Conclui no próximo texto)

Eduardo Aroso

7-11-2020 

domingo, 1 de novembro de 2020

 

O “DIA DAS BRUXAS” (INVERSÃO DE ESCORPIÃO) E A BANALIZAÇÃO DA VIDA E DA MORTE

 

Alguém no facebook colocou uma foto de uma criança vestida como convém ao seu gosto de mãe, e escreveu: «Gosto muito de ti minha vampirinha». A abóbora oca, iluminada, é um ludismo bonito para as crianças; diferente é ser bruxinha; mais ainda parece ser vampira!

 A progressão é clara, uma INVERSÃO progressiva do arquétipo de Escorpião, porque até durante o ano os jovens andam de t-shirt preta com uma caveira (e não só)! Vem isto obviamente a propósito do Dia de Finados ou Fiéis Defuntos. A educação que se está a dar às crianças, banaliza as duas realidades: a vida e a morte. Pese embora tudo o que ao longo de séculos se tem escorrido do mistério e de experiências no sentido de crer que há algo para além do último suspiro, tudo isto tem sido tomado (importado) como um jogo de bruxas e vampirinhos para nos assustar ou fazer rir. É um carnaval que prenuncia o outro que virá, esse no tempo certo, depois do Natal. Eu que leccionei durante 35 anos, causa-me tristeza esta pedagogia que se fez moda. É certo que os mais velhos têm outra atitude, todavia é de lamentar não haver outra maneira mais inteligente e com um sentido mais pedagógico de vivenciar esta efeméride.

 

É certo que esta data não acontece por acaso, quando o Sol transita em Escorpião/Serpente/Águia. Esconde-se um sentimento (vontade) oculto na bonita cantilena, felizmente ainda vivenciada em Portugal, na qual eu próprio participava em criança, que reza assim:

Bolinhos e bolinhós

Para mim e para vós,

Para dar aos finados

Que estão mortos e enterrados

À porta da bela cruz

Truz, Truz, Truz!

Transpondo o sentido do pão (coisa material) há, creio eu, a verdade de “alimentar” a relação dos vivos e dos mortos por uma amoroso pão de memória («para dar aos finados», saudades que ficam de quem partiu. Chamar-lhe-emos Pão da Vida.

 

É neste dia que os mortos estão mais próximos de nós («quando os mortos amados/batem à porta do poema»). Significa isso que são bruxos e bruxas ou vampiros?! O filósofo António Telmo disse que uma pessoa aceita muito natural ver imagens na televisão de alguém que já morreu, mas se tivesse uma visão dessa pessoa em sua casa, ficaria gelado de medo. É o modelo cultural das nossas sociedades da cerrada oposição vida-morte, ainda que sejam realidades distintas. Espera-se que num futuro próximo ele passe por uma outra educação, qualquer que seja, mas que não banalize o que é a nossa caminhada aqui e além fronteira…

 

Eduardo Aroso ©

1-11-2020