quarta-feira, 30 de outubro de 2019



MAR DE LAMPEDUZA ©

Aquiles voltou.
Regressou da História
Célere além das aves,
Imitando a esperança
E soprou nas águas
Para levar rostos famintos
E olhos que não distinguiam
A noite do dia, a dor do destino.
Aquiles soube da surdez ao longe
E provou o amargo da derrota.
Chegou de outro modo
E não foi para retomar
A tese difícil do pé.
O amor reforçou-lhe o tendão.
Triste e imortal pela vontade
O seu calcanhar sangrou.
E Aquiles então chorou.
  
Eduardo Aroso ©
Verão 2019

quinta-feira, 24 de outubro de 2019


OUTONO EM BAIXO-RELEVO ©

O vento passa rente ao chão,
célere
e gémeo
dos pés de Mercúrio,
Segue para os montes
soberanos nos cumes.
Tocou as folhas secas
depois húmus.
Junto à terra
a metamorfose.
é o chão que varre o chão.

Eduardo Aroso
Outono 2019

sábado, 19 de outubro de 2019


CENA DAS MENINAS ©

Três crianças passam.
Não se sabe se são irmãs
Ou inocentes de tal modo
Que a fraternidade as conduz
Leves e ágeis pelo passeio.
É mais risonha a manhã,
A brisa ganhou aroma.
O vento e a poeira são destino
No seu corpo vendo o sol
Pelos rasgos do vestido
E os labirintos da privação.
Todas são enigmas de recomeçar
Contra a surdez de vivos-mortos.
A orientação delas é centro do mundo.
Três crianças passam.
Não são as «meninas de Velázquez».

Eduardo Aroso ©
12-10-2019

domingo, 6 de outubro de 2019



O cardeal poeta e profícuo escritor D. José Tolentino Mendonça tem, a partir deste momento, o ensejo soberano (o único depois da época de Fernando Pessoa) de, com a sua vasta cultura  e talento, contrariar - ou mesmo negar – o que o poeta de «Mensagem» afirmou sobre a relação (natureza) de Portugal e da Igreja de Roma. Mas só o futuro o dirá. Acresce a particularidade ou paralelismo com os políticos portugueses que vão para instituições europeias, vistos pelo povo com as melhores expectativas quanto aos benefícios que possam daí advir para a nação mais ocidental da Europa. Essas expectativas têm sido goradas, pois a verdade é que também pelo facto de na cúria romana ter estado um papa no longínquo passado e das nossas relações com o papado, nada disso nos livrou, por exemplo, da Inquisição e, no caso político, da Troika e de sermos o país dos experimentalismos do FMI.
Mas ser português não é ser universal, como Agostinho da Silva e outros afirmaram? Não é sermos actores da História, contada de outro modo, que é a natureza do Homem português, patente em «Peregrinação» de F. Mendes Pinto? Claro que sim.
O que parece é que, seja agora no caso de um prelado (oxalá seja excepção) ou de vários políticos portugueses, a esperança sebástica - a que deveria cumprir-se aqui – parece inverter-se, e assim os “desejados” são apenas para os outros. A globalização é do mundo do dinheiro e do controlo pelos satélites. Contribuirá o novo cardeal para que no seio da Igreja portuguesa se fale, do Pe. António Vieira, da poesia de Frei Agostinho da Cruz, das teses de Orlando Vitorino e de Leonardo Coimbra sobre a relação teologia-filosofia e de muitos mais temas afins? Só o futuro o dirá.

Eduardo Aroso
5-10-2019


quarta-feira, 2 de outubro de 2019


APRENDIZES DE GAMAS, MAGALHÃES E CABRAIS©

Sem carteira profissional e com bússolas avariadas (embora com gps muito pessoais) correm numa agitação de quem anda a fazer estágio para comandante de embarcações. Bebem um copo ali e outro acolá, e dão dois dedos de conversa. O seu lugar deveria ser nos estaleiros da nação, porque também aí se despacha correspondência e se desempenham outras tarefas. Trabalho de fundo seria mesmo ver se o casco do navio não deixa entrar água. Mas a obsessão pelo estibordo e bombordo (direita e esquerda da embarcação) leva-os a estados maníacos, e cada qual dizendo que um dos lados do navio é o mais importante, querendo fazer dele proa! Isto não fica bem numa classe profissional, ainda por cima de estagiários, que praguejam ainda antes do navio zarpar! Cada qual quer ter a façanha de chegar à Índia, isto é, quer a Índia para si: dispensando a canela e o marfim, pretendem apenas o ouro e, claro, para os familiares, o lugar de contador-mor nas alfândegas. Esquecem-se que a Índia já não é a do mapa, mas a que se pode construir no chão de cá, onde, tantas vezes, se fazem estranhos consentimentos.
Este fim-de-semana vão desfilar na “passerelle”, e ainda bem, pois se não houvesse passerelle seria muito pior…  Não deixe ao menos de dizer quem é que é vai mais bem vestido e quem, em caso de naufrágio, pode impedir de entrar água no navio.

Eduardo Aroso ©
(em dias de Interregno)
2-10-2019