quarta-feira, 20 de dezembro de 2017


ADVENTO ©

Sobre a pedra fria
O musgo veste o calor da ânsia.
A lenta ascensão dos poços
Espera o solstício de Inverno.
Anunciavam a noite os corvos nos pinheiros
E as pombas brancas desfaziam medos.
Tudo será banquete de luz
Na toalha de linho
Alongada a qualquer distância.
O espaço é metafísico
Onde se prepara outra incisão.
Já o tempo se dispõe
Num colo de graça
E todos os bichos se acariciam.
A fome oculta derrama-se
Às portas do coração.

Rio de Vide,
Dezembro, 2017

Eduardo Aroso © 

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

    RIOS ©

    A intermitência
    Entre a agonia
    E a líquida viagem
    Espraiada de alegria.
    Vão, caídos
    Sob o chicote do tempo
    Impiedoso acto.
    Via-sacra pagã
    Onde os gritos mais dolorosos
    Vão no fundo do leito.
    Mas ninguém os quer ouvir
    Ah, o futuro não é abstracto.

    Eduardo Aroso
    14-11-2017

    quarta-feira, 1 de novembro de 2017


    CALENDÁRIO ©

    Silenciosa
    A pedra
    Toca na terra.
    Na última dissolução
    Há fortes vestígios de amor.
    Sobre o manto fugidio do tempo
    Já o chão não é o que se vê
    E reverdece a memória
    Íntima flor.

    Eduardo Aroso ©

    1 de Novembro, 2017

    terça-feira, 17 de outubro de 2017


    ILAÇÃO SIMBÓLICA DA PERDA DO HISTÓRICO PINHAL DE LEIRIA

    Os sucessivos desgovernos da nação deixaram finalmente eclodir, pela combustão, o que resta da memória mais ou menos consciente no povo, mas, em absoluto, toda ela de timbre  universal que é a essência do arquétipo do  português de Quinhentos. Como alguém disse, o que restava da «lenta decomposição da pátria» surge finalmente em labaredas de aflição que são também a consciência – existindo, gritante, ainda nalguns – do que é ou não é Portugal.
     Seria estultícia pensar que o espaço mítico glosado em «Mensagem» aludindo ao «plantador de naus», esse «rumor dos pinhais», por um capricho do destino o tempo o dispensaria, por as naus já se terem cumprido. Parece, no entanto, que a extinção agora do pinhal não vai no sentido da reposição do peculiar marulhar de ramos ondulantes ao vento, na esperança todavia de outras futuríssimas plantações. Extinto o Pinhal do Rei, essa canção da orla que ainda nos percorria a epiderme mais funda  a resguardar um viver de alma, inevitável é a interrogação presente sobre o lugar das novas plantações para as naus do futuro. Formulação na Língua ou «fala dos pinhais, marulho, obscuro» que pela intromissão grosseira do recém acordo ortográfico, dificulta cada vez mais e limita a sonora interrogação que, por certo, não desconhece a solução de continuidade natural de «Ao princípio era o Verbo».
     Nesta hora difícil em qualquer dimensão, tudo se nos pede para que se cumpra também a sentença pessoana «quem não vê bem uma palavra, não vê bem uma alma». Se a reconversão profunda só é possível por actos necessariamente radicais, não no sentido deturpado actual do termo, mas numa abordagem da raiz do problema, somos levados a indagar essa possibilidade. Na recente edição (VII) da Obras Completas de António Telmo, há um escrito inédito «Homens sem Sono» onde  o filósofo coloca a delicada questão. Fiquemos então com a sua leitura como meditação. «O problema que se põe é o de saber se, entre nós, há homens despertos activos, homens-galos, não no sentido puramente estético do termo, mas naquele que Boitaca associou aos descobridores do Caminho pelo galo que anuncia o nascer do sol no alto da coluna e que talvez explique a etimologia do nome de Portugal».

    Eduardo Aroso
    17-10-2017

    segunda-feira, 16 de outubro de 2017

    DO FOGO (ANALOGIAS)

    «Eu vos baptizo com água para o arrependimento, mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu.(…)  Ele vos baptizará com o Espírito Santo e com fogo». Mateus 3,11

    Sendo um dos clássicos 4 Elementos, também segundo as mais credíveis correntes esotéricas de qualquer época, é no Fogo que reside o que se pode designar por princípio espiritual. Seguindo também o axioma hermético «o que está em cima é como o que está em baixo» (em opção pessoal pela escrita «o que está em cima tem correspondência com o que está em baixo», pois a substância de mundos diferentes só pode ter equivalência/correspondência, e não igualdade), resulta claro o raciocínio de que o panorama sufocante e de morticínio que se tem abatido sobre Portugal tem uma correspondência oculta com o elemento e princípio espiritual Fogo, o mesmo é dizer que na nossa tradição espiritual portuguesa nos remete para o Espírito Santo. 
    Lembrar o sinal dado pela trombeta do Quinto Anjo seria suficiente para crer que o fogo é um dos elementos da presente fase do Apocalipse, no sentido popular do termo como catástrofe e até caos, e no sentido vernáculo da palavra que, como é sabido, é o de Revelação. Seria assim como dizer que o fim de algo pressupõe o início de outra coisa. O princípio do Fogo que existe no que se designa por kundalini ou energia serpentina, é o «modus operandi» do Espírito Santo no corpo humano. Se despertado para fins egoístas ou quando se alinha com as forças do mal, pode ser perigoso para  a evolução do Homem. No plano espiritual, invocar o Paráclito (Consolador) para o que não seja verdadeiramente digno e edificante, é blasfémia. Prevaricar contra o Espírito Santo, segundo a Bíblia, acarreta o único pecado que não tem perdão, isto é, requer obrigatória expiação. Qual o significado de tudo isto no actual contexto da nação portuguesa, país territorialmente pequeno onde existem mais fogos do que em nenhum outro, terra onde há, ao que parece,  um exacerbado número de incendiários por Km2?
    Representa a calamidade do fogo físico um ocultamento do que é espiritual e não se expressa, ou seja, lembrando a meia-noite que se opõe ao luminoso meio-dia? Se as labaredas são em tudo diferentes do nevoeiro, ambas representam os lados (diversos) da mesma crucificação e expiação: o perigo de extinção pela combustão e a ocultação que o manto branco impede de enxergar como verdade. Nada nos pode causar anómalo espanto do que se passa em Portugal no domínio dos incêndios, na era do reino da quantidade. Por outro lado resta-nos a esperança de que tudo isto, sejam gigantescas labaredas de uma enorme Fénix que, como diz Pessoa, prepara o despertar para «A Nova Terra e os Novos Céus».


    Eduardo Aroso, 16-10-2017

    quarta-feira, 11 de outubro de 2017

    AFORISMOS (45)

    O BOM, o VERDADEIRO, o BELO. Prefiro este triângulo ao das Bermudas. Mais perto é o Cabo de Sagres, promontório que, no cabo dos trabalhos, dá passagem para a gávea do sonho.

    Eduardo Aroso, 11-10-2017

    domingo, 27 de agosto de 2017

    LUTE CONTRA A ATROFIA MUSCULAR

    Não deixe que os músculos da sua face se atrofiem por falta de sorrir. Até na velhice sorrir é um sintoma de certa juventude, como haver sol por trás das nuvens. Não se deixe atrofiar. Porém, não faça como aqueles idiotas que querem rir à força  nos cursos que juntam grupos de pessoas para rirem todas ao mesmo tempo, porque, talvez achem que é disparate sorrirem sozinhas!
     Mas aqui é que tudo começa. Estar perante uma flor, sorrir para ela não fica nada mal, até porque o seu sorriso pode ser o de manter a sua beleza de um modo permanente e incondicional, ao passo que o sorriso humano esvai-se e quantas vezes é pouco natural. O mesmo exercício dos músculos da face podemos fazer junto do nosso gato. Henri Bergson escreveu um livro sobre o Riso, enquanto atributo exclusivo do Homem entre os seres vivos. Mas ficamos sempre na dúvida se o riso de outros seres seguem o nosso padrão, pois que a sua morfologia e anatomia são diferentes das nossas. Sabemos que Riso e Sorriso não são a mesma coisa. Porém, aqui vamos colocá-los como irmãos.
     Sorrir para o gato pode ser um ensinamento para ele, como já ensinamos a fazer contas simples com uma máquina de calcular a um chimpanzé. Sorrir para o gato pode ser tão eficaz como passar-lhe a mão no pêlo. Quem sabe se, por enquanto não sorrindo junto aos seus bigodes, o gato não sorri por dentro? Quem pode afirmar que sim ou não? E o meu caro amigo (a) nunca sorriu por dentro?

    Eduardo Aroso

    27-8-2017

    quarta-feira, 23 de agosto de 2017


    CANTAROLARES COM SABOR AZUL de Risoleta C. Pinto Pedro

    Quem começa a ler este livro, não pode deixar de ser levado pela memória até ao clássico «Nursery Rhyme». Porque é de memória que se trata quando um adulto aborda a literatura infantil, ou seja, é por esse fio que a pura poesia se encontra, já que a vivência da infância, mesmo em casos de destinos difíceis, se há uma raiz límpida, é aí que ela se encontra.
    Mundo esse onde é sempre autêntico o tom das próprias palavras, que só podem surgir por um dom, que é o de saber escrever para crianças. Escrever para a idade da infância não é escrever versos e histórias em prosa utilizando a criança como «tema» - os hipermercados estão cheios disso – mas escrever PARA ELAS. Isso acontece quando ao primeiro verso ou ao primeiro parágrafo de uma história, ouvida ou lida, elas ficam num estado de encantamento que, parecendo às vezes não ouvir, gravam profundamente na memória a voz de quem conta a história ou lê o poema e se mistura com a voz dos anjos e das fadas que também podem estar por ali… A criança não é mera ouvinte; é a própria história! 
    A experiência tem mostrado que a genuína literatura para crianças, de um  mesmo modo gracioso também assim é recebida pelos adultos. E compreende-se bem, pois temos aí um raro momento de descondicionamento de conceitos e preconceitos e de outras pressões culturais. O adulto acorda então a criança adormecida que há em si, um eterno menino coroado para a era do Espírito Santo, tempo da abundância do espírito agora sufocado pela hedionda senha do «time is money» que em adulto terá que percorrer. 
    A sonoridade da rima da poesia para a criança é tanto o que sempre foi  e será de encanto para ela mesma quanto é o veio que atravessa a tradição popular, apetecível de escutar, seja num aforismo ou rifão, seja numa quadra ou versos em jeito de narração, como é, por exemplo, a Nau Catrineta. Assim, a rima é tão natural como o respirar ou o andar a pé em cadência binária. Sabemos que caminhar, escutando o som dos passos, é outra coisa.
    Este livrinho (o diminutivo não o reduz, mas, pelo contrário, torna-o uma pérola) agrada tanto a crianças como aos seus pais e avós. Bastaria lermos o primeiro poema do livro de Risoleta C. Pinto Pedro para nos deixarmos de imediato atravessar por uma saborosa sensação. Saborosa, porque, neste como em outros poemas do livro, a poesia, para além da cadência, é táctil, tem aroma. É um fruto e um rio. O leitor verá que todos os poemas, falando também de animais e flores, são frutos suculentos, quero dizer que, sem ser necessário levar muito longe a metáfora, as palavras têm suco; e levam-nos ao suco do mistério da infância que teima em permanecer em nós, mesmo quando o fio da memória interrompido nos anos, por certo esboça um último sorriso de alma, quer o vejamos  ou não.
    «Vou ao pomar
    apanhar
    um poema
    que não trema
    como gelatina;
    um poema rima
    nascido de semente
    e regado
    de fio
    a  pavio
    por um
    amado
    encharcado
    líquido
    rio. »
    (Risoleta C. Pinto Pedro)

    Eduardo Aroso, Agosto de 2017



    sexta-feira, 18 de agosto de 2017

    DO COMPLEXO FENÓMENO DO FANATISMO – DO ORIENTE AO OCIDENTE

    Radicalismo, fundamentalismo e fanatismo, podendo tocar-se, inscrevem-se em realidades com géneses diferentes, mas não constitui propósito destas palavras esmiuçar a questão, mas sim uma outra. Quanto ao título, o que de imediato nos poderá saltar à mente é se o fanatismo é apenas uma realidade que se gera no seio de certas sociedades a oriente, amiúde sob um rótulo religioso, geralmente islâmico, ou se também no ocidente a mesma compulsão ou grau emocional imbuído de questões doutrinárias, políticas e de outra natureza, também existe, embora de outra maneira. Não pode haver esquecimento para o fanatismo ocidental hitleriano que pretendia exterminar os impuros de raça. O mesmo perigo ronda hoje um presidente que por certo, não em nome de Alá mas em nome de um egoísmo pessoal ou de interesses outros, pode disparar um míssil.
    Se existe esta má sementeira também a ocidente, ela é uma realidade que não pode ser iludida. É hábito dizermos que há pessoas boas e pessoas más em todo o lado. Os fanáticos podem existir em qualquer ponto do globo, certamente não sobrevivendo da mesmo maneira, porque como bem observou Edgar Morin (e cunhou o conceito) as sociedades ditas evoluídas tornaram-se «complexas», termo que, em meu entender, se deve também, ler «completas». Está claro que, se assim é, os modos como pode existir o fanatismo para os lados onde o sol se põe, é bem diferente do seu congénere a oriente, e as máscaras que toma no ocidente fazem-no logo menos perigoso, pois, quando muito, tido como ideologia ou princípios, agredindo de uma maneira mais amortecida e até adocicada…
    É um facto que o chamado «Estado de Direito» e o próprio diálogo democrático, com todas as imperfeições que possa ter em alguns países, vai estabelecendo a grande diferença entre fanatismo e convicção. Do ser tribal à individuação, como Carl Jung a viu, vai uma grande distância. E é indiscutível que à Europa a partir do Renascimento se deve a consciência mais nítida do que é a individualidade, porque individualismo é sempre a baba que cai sempre de qualquer boca mais egoísta. 
    O fanatismo tem-se conotado com o fenómeno religioso ainda que possa estar imbuído de alguma interferência sociopolítica, mas a mesma compulsão pode existir especificamente na política, com ou sem o nome de ideologia todavia em intransigente defesa partidária. Assim a militância, embora mais branda, é susceptível de assumir uma atitude fanática. Até na arte, que não obedecendo a normas rígidas (muito embora exista sempre um «espírito de época» e com a liberdade que acompanha o instinto criador) se pode encontrar algum fanatismo quando nega toda a estética anterior para criar uma outra de raiz. E não é menor fanatismo o que – e cada vez mais – é praticado por adeptos de futebol que não atirando nenhum carro para a multidão, podem, contudo atirar umas tochas a arder para a bancada dos adeptos da equipa adversária. Esquece-se bastante que muito embora tenha havido ao longo da História épocas de rupturas, o certo é que como dizia um velho agricultor da minha aldeia «o mundo é feito às camadas, como uma cebola».
    Já foi dito há bastante tempo que muito mais difícil do que encontrar um ser verdadeiramente genial seria encontrar um ser equilibrado. E na diferença se pode ver a maior ou menor permeabilidade a essa incontrolada compulsão humana que tantos estragos faz. 
    De actos mais antigos como os “zelosos” da pureza doutrinal” mas que queimavam imediatamente os que lhes pareciam fora desse estado de graça; dos que são adeptos das touradas com reprováveis agressões aos animais, aos que, ainda ao jeito mais severo da lei mosaica, quase chicoteariam, se pudessem, os que se manifestam a favor da arena, vai ainda um caminho de compreensão que obviamente tem que assentar numa pedagogia de ética da vida. Ou dos que reprovam a utilização das lãs para não molestar os animais, esquecendo-se que é um bem para o próprio animal a mansa tosquia. 
    O que é estranho é que no Ocidente muitas situações de fanatismo são paradoxais, isto é, onde não era suposto haver tal desequilíbrio ele existe. Mas na génese do fanatismo parece estar a raiz de todos os males: o poder, isto é, a ânsia desesperada e errada de ter poder.

    Eduardo Aroso 
    18-08-2017

    terça-feira, 15 de agosto de 2017

    JOSÉ LEDESMA CRIADO (POETA)
    In memoriam
    Avistava-se e era certeza
    - um caminhar seguro
    Movido pelo exercício vespertino das gaivotas
    Lá para os lados de Buarcos,
    Ou pelo mistério das ondas
    A espuma que ele amava como o sangue.
    Via-se e era uma aura extensa
    Cadência larga no andar
    E um gesto como a mão grácil de criança.
    Antes do encontro
    O abraço já estava no coração
    E num ritmo que era só dele
    A respiração, toda palavra:
    - Hombre, que tal?!
    Eduardo Aroso
    Verão 2017

    sábado, 29 de julho de 2017

    MULHERES DE RIO DE VIDE ©


    Elas tinham o dom de espremer a vida
    Que a muitas só chegava gota a gota.
    O sol era alto e forte
    A broa um milagre diário
    Do resto a fartura pouca.
    Só nas manhãs de Maio
    Havia perfume nos seus cabelos
    Quando vinha a aragem sobre eles
    Junta com o cantar do gaio.
    As horas, fundas
    Tal era a enxada na terra.
    Dava-se conta delas
    Pelo sino
    Ou pela ovelha que dava sinal.
    Levavam os filhos
    Que ficavam sobre o avental
    A alegria por cima
    E a tristeza por baixo.

    Essas mulheres são hoje invisíveis,
    Sombras quietas de memória.
    Ninguém as apaga.
    Ninguém as derruba.
    Mais firmes que as colunas de Hércules!

    20-7-2017
    Eduardo Aroso


    terça-feira, 11 de julho de 2017


    ÉPICA ÚLTIMA©

    Agora os anciãos longe dos sinais de trânsito
    Já não pedem à beira das estradas
    Nem vão para as tabernas recolhidas nos museus.
    Jogar às cartas é uma fase intermédia
    E dar de comer às pombas no jardim.
    O tempo de pedir esmolas
    Passaram-no aos mais novos
    Os que há e, quem sabe, os que virão…
    O ímpeto para a sobrevivência
    Está em aceitar o que lhes dão.
    Vivem alheios e sem subsídios
    Para a guerra que se trava dentro deles
    A das sinapses no instinto de defesa
    Sem palavras de carinho que as liguem.
    Por fora a liça é visível
    Sem cremes de remedeio:
    Ficaram rugosos todos os mapas-do-mundo
    A vida some-se para ficar incrustada noutro lado.
    Oh, milagre derradeiro! Raramente cai no chão
    Ali aos pés uma estrela vinda do espaço longínquo
    Lá onde talvez se entenda melhor o que é a vida.
    Quando isso acontece os anciãos iluminam-se
    Como a frágil esperança dos tratados de paz.
    E até na rugosidade da pele se percebe
    Uma serena e iluminada explosão
    De uma espécie de Big-Bang que logo se desfaz.

    Eduardo Aroso©
    11-7-2017


    segunda-feira, 3 de julho de 2017


    O FACEBOOK COMO CONFESSIONÁRIO

    Nietzsche observou, no seu tempo, que o jornal diário tinha vindo substituir o hábito para muitos da missa matinal. Ainda que o papel impresso para notícias do quotidiano continue a existir, mais de um século depois, as gerações novas rapidamente o têm substituído pelo tablet ou pelo telemóvel numa mão enquanto a outra se ocupa de uma bica e de uma nata. Num lapso de tempo, o mural de muitos utilizadores tornou-se numa espécie de confessionário. Um estranho lugar onde, entre outras coisas do expediente, se lançam mágoas mais ou menos dissimuladas. Mas também atitudes tipicamente neomedievais de trazer pessoas ao pelourinho para lhes aplicar a malhação, como aliás acontece por outras vias. Falamos de um espaço livre, onde cada um coloca (à excepção de alguns interesses de publicidade comercial) assuntos do seu gosto, e que por isso revela a natureza do seu utilizador. Como disse um sábio «se queres conhecer uma pessoa, observa o que ela faz depois de cumpridas as suas obrigações a que não pode fugir». 
    Descontada a alínea barata da fofoquice, é no espaço de hodierno confessionário que o fb apresenta uma das suas características mais interessantes, digna da atenção da psicanálise ou outra área de estudo de observação. No confessionário digital, é certo que o assunto passa a ser público, mais ou menos dissimulado, mas onde se descortina a necessidade de confessar as tensões e problemas pessoais, quantas vezes por causa de cicrano ou beltrano. Nesse novo espaço onde se julga aliviar a alma (podendo mesmo aliviar), a moral é simples: todos os pecados são perdoados desde que se fale verdade, ou pelo menos se faça por isso. Não propagar a mentira já é muito bom. Viva o facebook!


    Eduardo Aroso

    domingo, 25 de junho de 2017

    BILHETE PARA A POSTERIDADE©

    Aqui viveram pessoas
    Longe da maresia dos subsídios
    Que atracam no Terreiro do Paço.
    Comiam sempre
    Do que a outros resta…
    Morreram na esperança
    Do tal ordenamento
    Como justiça dos homens
    E do acto divino,
    Ressurreição final
    Da floresta.

    25-6-2017
    Eduardo Aroso


    terça-feira, 13 de junho de 2017

    FERNANDO (ULTRA) PESSOA

    Cada um puxa e repuxa
    Conforme é capaz.
    No jogo das cordas
    Surge sempre
    Um académico
    Capataz
    Que dá a ordem:
    - Todos numa!
    (Isso é sistémico…)

    O poeta (se assiste)
    Desfaz-se de mágoa,
    Na tola justificação
    Do vinho no balcão
    E que persiste
    De ter mais uva ou mais água.
    Mas puxando
    Assim ou assado,
    Com força ou com calma,
    Ninguém lhe desfaz o génio
    Nem toca na alma.

    Eduardo Aroso 
    Junho 2017



    sábado, 20 de maio de 2017

    «NO PRINCÍPIO ERA A PALAVRA»

    No princípio era o Arquétipo
    E o Arquétipo era Deus muito acima
    De perfeito ou imperfeito
    De bem e de mal.
    Era Deus Incriado
    No paradoxo divino de criar
    E recriar.
    Por ele é que tudo começou
    E por isso Tudo É.
    Tudo começou a existir
    Como uma estrela que brilha
    Onde o céu era escuro,
    Como os frutos infinitos
    Que escorregam da árvore da vida
    Dádivas de luz solar,
    Ou os ventos que são a respiração de Deus,
    Também os mundos moléculas de ensaios
    Do Arquétipo
    Que brilha sobre os tempos transitórios
    Milénios que se apagam da memória sensível do Homem.
    Nem a morte vence o Arquétipo Maior
    Como um barco em naufrágio sempre com salvação
    É que no fundo mergulho do amor
    A morte grita e ao mesmo tempo tem a sua redenção.

    Eduardo Aroso©
    20-5-2017


    segunda-feira, 1 de maio de 2017

      ESTATUTO DO ANIMAL, O AVANÇO CIVILIZACIONAL … E O NOVO DESAFIO

    A partir de hoje, em Portugal, um animal, sob o ponto de vista jurídico, deixa de ser coisa, considerando-se um ser vivo e com sensibilidade.  Basta olharmos para trás, para vermos que ainda não há muito tempo os animais em geral (alguns em particular) eram submetidos a maus-tratos intencionais e, em grande escala, a esforços desmedidos ajudando o  homem, para se perceber que estamos perante um avanço civilizacional. Mais avançado será não os matarmos para comer, o que felizmente alguns já fazem. Mas numa sociedade em que tudo tende a ser COISIFICADO (onde cabe também dizer tudo a ser informatizado), a sociedade do reino das estatísticas sentadas no trono sobre o soalho raso da insensibilidade, tudo isto nos lança um novo desafio perante o estatuto do animal e perante os nossos semelhantes masi directos. Desafio não só quanto aos animais (ou os chamados «irmãos menores» no caminho evolutivo), mas nas relações fraternais com os seres humanos, há que dar uma espécie de salto qualitativo.

    Ter número de identificação fiscal não pressupõe sensibilidade - ainda somos coisa. Tratar bem as árvores e plantas já é diferente, como diferente é a relação com os animais. Mas tudo isto nos leva inevitavelmente a pensar no SER HUMANO MAIS FRACO, quantas vezes FERIDO NA SUA SENSIBILIDADE e na SUA RAZÃO, e não tem quem o defenda: as custas judiciais são caras e nem todos podem nascer em “boas famílias”… e tratar da saúde, às vezes, fica caro.

    A consciência do ecológico chegou quando se verificou a ameaça ao meio ambiente, tal como a consciência do que é o animal se afirma agora plenamente, pela constatação do que os animais têm sido sujeitos ao longo dos tempos. Muitas vezes se diz que há seres humanos piores do que animais, o que não é verdade, seja pela óptica do criacionismo seja pelo darwinismo, pois não podemos comparar, por exemplo, uma garrafa de vinho com um automóvel. A razão humana, não sendo comum ao animal (daí não se poder comparar) pertence à natureza do Homem que a pode utilizar para o bem ou para o mal, daí a responsabilidade do ser pensante. Vamos lá: dizer bom dia ao cão ou ao gato, fazer um mimo, é tão importante como pensar que se deve dizer bom dia ao vizinho. No que é verdadeiramente importante na vida, os actos que têm significado são insubstituíveis.

    Eduardo Aroso

    1-5-2017

    domingo, 23 de abril de 2017

    A ESPECIFICAÇÃO DAS MARGENS
    "O homem e a hora são um só» (Mensagem, Fernando Pessoa)

    Entre os dois lados do tempo, no cimo de um muro que separava, cresceu um cravo, para ver se chegava ainda mais alto à liberdade. Mais acima - águia silenciosa - havia um homem que olhava. Podia chamar-se Destino, Ousadia, mas o nome civil era Salgueiro Maia. Hoje há o muro em paradoxo, de outro jeito. Uns atravessam-no, mas há quem o tema como de minério fosse, quando é a própria sombra. Hoje olhamos na vertical o cravo no gume do muro. Para que lado cresce?

    Eduardo Aroso

    23-4-2017

    sexta-feira, 14 de abril de 2017

    PÁSCOA E NATUREZA 

    O êxodo nestes dias de Páscoa em busca de praias ou de itinerários serranos faz-nos pensar nas raízes portuguesas do nosso peculiar paganismo. Todavia, se por um lado é um acto natural, de outro modo este ímpeto actual repousa também numa crescente atitude turística dessacralizada. Não é de todo inviável a vivência pascal no abraçar a Natureza que nos desponta e brinda, isto é, fazer dela também um altar. Não parece ser todavia esta debandada de gente, assustada com o sagrado, a busca de um Paganismo superior como queria Fernando Pessoa. O impulso é mais um sintoma que contém algo de incrustado desespero de quem já fez uma cisão com a Natureza: pelo lado de dentro, com equivocado entendimento do lado de fora.
     O penúltimo capítulo da «História Secreta de Portugal» de António Telmo mostra o cenário que se nos oferece ver. Quem se senta numa esplanada à beira-mar parece não suportar já a sonoridade das ondas, as frases melódicas das gaivotas, em suma, a voz do mar entrelaçada com o vento, coisa agora de metereologia ou algo que pode trazer algum prejuízo aqui ou acolá numa plantação, se sopra mais forte. A música, de batida insistente e em subido volume, abafando mesmo as conversas, diz que o dono daquele espaço comercial, se assim não procedesse, a esplanada teria pouca ou nenhuma gente. O dito “stress” – ou uma estranha relação com a Natureza – não se desagarra das pessoas nesta via-sacra pagã. O espanto, face ao silêncio ou ao som da terra e do mar, deu lugar ao medo do silêncio.

    Eduardo Aroso

    (Páscoa de 2017)  

    domingo, 9 de abril de 2017

    Domingo de Ramos (in ilo tempore) ©

    Dias antes já era uma azáfama, um louvar a Deus de preocupações e alegrias. O corte do loureiro e enfeitá-lo não era menos preocupação para os rapazes do que o lavar das casas para as mulheres. «A limpeza Deus a armou» diziam as mais velhas, e assim teria que ser para dali a dias receber o Senhor. Escova de aço nas mãos, sabão azul e os joelhos em penitência a lavar o sobrado. Os aspiradores eram naquele tempo ficção científica.
    A maior altura do loureiro que os rapazes levavam era o record a alcançar. Mas quanto mais alto, mais peso, por isso os mais velhitos tinham vantagem. À porta da igreja tinham que os baixar para entrarem convenientemente; o entusiasmo era maior do que a altura! Estava ali a representação bíblica, à maneira da aldeia, de gente simples mas autêntica. Era a nossa entrada triunfal em Jerusalém. Lá dentro, alguns loureiros roçavam o tecto da igreja perante alguma preocupação do padre que começava a celebrar a missa, não fosse a pontareca de algum ramo  bater no azeite das lamparinas. Depois a água benta chegava a todo o lado no momento próprio. Quanto às mulheres, não tinham problemas, pois os raminhos que levavam quase cabiam debaixo das mantilhas.
    À saída o entusiasmo não era menor do que aquele que tinha entrado uma hora antes. É que para o Domingo de Páscoa faltava uma semana e já se pensava no junco e no rosmaninho.

    Eduardo Aroso ©

    Domingo de Ramos, 2017

    sábado, 8 de abril de 2017


    PASCOAES – O ENCONTRO E A DISTÂNCIA ©

    Desconhecido o convite,
    Fui pelos meus sentidos
    Para te observar as rugas
    Que descem ainda do teu rosto
    Escarpas perenes do Marão
    Ao sol-posto.

    O que persiste é a força da gravidade
    Noite e dia sem descanso
    A que os poetas chamam saudade.
    Desconheço o convite
    Para analisar as fontes,
    Mas sei que as águas
    São as primordiais
    Que correm entre as duas margens do tempo
    E que dispensam rastreio,
    Pois basta nascer aqui
    Para haver o mais sério juramento.

    Belo é tudo acontecer
    Na rebentação da terra
    Até aos píncaros da serra
    Onde as águias se reúnem
    Ocultas
    Livres do cumprimento de horários
    Para atender à chamada.
    Todas as esperas silenciosas
    Fortificam o tutano da certeza
    Em cada nova primavera.

    7-4-2017
    Eduardo Aroso ©





    quinta-feira, 30 de março de 2017

    UMBILICAL

    A expressão corrente e pouco agradável de ouvir «não sair do seu umbigo» ou estar apenas no seu umbigo» é, no plano qualitativo, diametralmente oposta ao sentido tradicional do que representa este ponto nevrálgico do nosso corpo e da nossa psique, aparentemente como toca do egoísmo. René Guénon diz ser o «omphalos», relacionado com o Centro do Mundo, sob o ponto de vista iniciático e espiritual. Também o umbigo humano é o assento físico do chacra esplénico, a que os antigos chamavam o “segundo sol”. Hoje mesmo, constitui um ponto de concentração em certas práticas de meditação. Nesta perspectiva, se a ideia de Eu Superior tem algum acento físico-energético, é no plexo solar na zona do umbigo, e que, aliás, fica sensivelmente no meio do corpo.

    Umberto Eco chamou a Tomar «o umbigo do mundo», coisa que muito antes alguns já sabiam, ou seja, haver um “chacra” templário a meio de Portugal, nesse local que, ligado a mais dois pontos, se denominou «triângulo místico» português». O acto de cortar o cordão umbilical implica uma cisão. Ora, o sentido dessa cisão não impede de continuar a haver uma profunda relação (tal é o caso da mãe-filho) resultante desse centro ou útero de onde se nasce. Mas também pode dar origem a uma perda irremediável. Não o será se o que se separa mantiver, de certo modo, alguma continuidade nem que seja apenas por uma vaga memória.  Não haverá cisão se esse Centro do Mundo ou umbigo for como uma espécie de sol, que verdadeiramente oculto (o tal “segundo sol” mas como também o Papa oculto) irradiando em todas as direcções. Aí pode ser uma imponderável Rosa-dos-Ventos.

    29-3-2017

    Eduardo Aroso

    sexta-feira, 10 de março de 2017


    ESPELHO©

    Impossível é a lua cheia
    Entre
    Os prédios mais altos.
    O chão é livre
    Mas não voa para a contemplação.

    Eduardo Aroso©

    10-3-2017

    segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017


    DAS REDES…

    Hoje as redes sociais deslaçaram-se completamente no passeio da rua sem viva alma, ao ponto de já não chegarem às cadeiras vazias do café. Não se adicionou nem bloqueou ninguém; aquilo era o que havia. Como é domingo, há uma rede cercando a igreja, rede meia partida, mas mais forte à entrada do templo. Não falo nos vendilhões do mesmo, mas dos pedintes. Reparei, mais adiante, que pelos alpendres e varandas, sem as pessoas e flores que noutros tempos havia, é provável que por lá passassem e andassem umas redes invisíveis… claro está. Há mais: as redes dos quintais confundem-se com as silvas. Até as redes dos pescadores estão limitadas; adicionar este ou aquele peixe não é à sua vontade. O certo é que ninguém gosta de ser enredado. Estar na fila é outra coisa. Melhor é voar e deixar o caminho livre para os outros.

    Eduardo Aroso

    27-2-2017

    quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

    APONTAMENTO ANÍMICO-BUCÓLICO©

    Ao poeta António Salvado,
    nos seus 81 anos

    Os verdes prados insistem
    Na rebentação dos dias,
    À margem das insígnias da morte
    Que alguns anónimos depõem em seres humanos.

    Estalam as manhãs
    No silêncio entranhado
    Da humidade longínqua do Génesis.
    A imunidade dos talos
    E a seiva escorrendo
    Como um grito de vitória
    Pegajosa esperança ávida de respirar
    Na boca agónica do mundo.

    Se há ribombar do aço
    Manchando a geografia,
    Solta-se uma fonte,
    Ave, ímpeto de sair do ninho.
    Exaltam-se rouxinóis nos salgueirais
    E as velhas alminhas brancas nos caminhos
    Ganham aura de catedrais.

    Eduardo Aroso©
    (22-02-2017
     entre Rio de Vide e Coimbra)

    quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

    SOBRE CANONIZAÇÃO
    (escrito algures entre Miranda do Corvo e Coimbra)

    Como a palavra indica, o que está ou se submete a um CÂNONE. Um cânone musical é uma composição que requer uma certa estrutura sob pena de não ser cânone e não poder ser cantado ou tocado como tal. Há muita gente por esse mundo fora que viveu (e ainda vive) num rigoroso cânone de pobreza, de dignidade, de carácter, com abnegado esforço, mantendo-se fora de favorecimentos políticos, religiosos ou sociais. Vida canónica de um modo discreto quando não anónimo.

    A minha avó, mulher da terra arável, que tinha como despertador o canto dos primeiros pássaros da manhã, que cuidava do pasto e da rega como outros cuidam das acções em bolsa, viveu no cânone do suor do rosto. Foi portanto uma mulher canonizada sem processos de milhares de páginas a justificar, e se justificação houvesse de outra ordem, ela teria um coro de árvores e de animais que deporiam a favor; a voz da terra que, na época própria, ela encarava como se fosse um altar onde também na Primavera e no Outono havia autênticos milagres. Quando era mais jovem eu já me tinha apercebido de que a minha avó era santa, porque viveu escrupulosamente o cânone do seu destino.

    Eduardo Aroso
    (9-2-2017)


    domingo, 5 de fevereiro de 2017

    AFORISMOS (44)

    Aquilo que se foi introduzindo na mente do ser humano da actualidade como lógica irredutível para praticar a eutanásia, corresponde, na ciência, à manipulação do transgénico enquanto início de um processo de grande alcance, ainda indeterminado, das possibilidades da genética; e também não anda longe daquele pensamento que ainda tem o homem como “rei da criação”, isto é, o ser criado, não admitindo seres de dimensões diferentes da sua, entende que (desafiando o Criador) sabe tudo sobre a vida, para dela dispor não no sentido de legitimamente a conduzir no possível livre-arbítrio, mas de a criar de raiz, como se também fosse capaz de criar os mares, as serras, o movimento dos astros no mais belo quadro que é a recepção diária do sol, o fogo primaveril que brota anualmente sem a mão do homem.

     Eduardo Aroso

     5-2-2017   

    quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

    EXORTAÇÃO SOBRE UMA CORDA DESAFINADA ENTRE ESPAÇO E TEMPO

    (À tríade Alexandra Pinto Rebelo, Cynthia Taveira e Bruno Santos)

    Portugueses em todo o mundo, uni-vos e estabelecei um novo padrão para espaço nenhum, podendo ser visível de outro modo. Uni-vos descendentes da «raça dos marinheiros», vós que sois formados na arte de não deixar erguer muros, peritos na engenharia de pontes de afecto duradouro que juntavam a margem branca com a outra escura, e que criastes o primeiro tratado de diplomacia do mundo chamado «Carta de Pêro Vaz de Caminha», vós que ainda alimentais estaleiros com a renda do sonho (o suor escorre para o telhado, pois quer olhar as estrelas…).  Desenrolai a corda que espera ansiosa e espiralada nos Painéis de Nuno Gonçalves, a corda sagrada, sinal de reconhecimento, e que é ave flamígera à espera de voar sobre os mares do tempo onde se desfazem os calendários civis como grades de prisão.
     Esperam-nos as naves do tempo, não sujeitas ao carburante dos mercados financeiros. Do tempo concreto, amoroso, como quem visita um familiar que se afastou há muito de nós ou o futuro, como quem idealiza a moradia bafejada pela natureza, onde o vigor solar e a ternura da lua entrem e saiam sem impostos obrigatórios. Portugueses de agora, sois de todos os tempos, deixai a fome da terra, e não mais vos alimenteis de sapos (engolir na altura de eleições é doloroso). É sábio não dar tanto valor à impermanência do registo civil. Largar, largar do porto chamado Agora, o ponto onde vos encontrardes, quer se apanhe bem ou não no Google, em qualquer ponto cardeal, onde haja ou não emigração.
     Os outros que têm carta de condução falsa para conduzir o mundo, são os timoratos do tempo, afogados no consumo. Larguemos então a viajar no tempo, sejamos de novo pioneiros, estabeleçamos protocolos duradouros e vantajosos com os extraterrestres, almas do outro mundo, como são aquelas da nossa devoção que ainda lembramos quando passamos nas aldeias pelas alminhas caiadas de branco, naves da nossa fé. Protocolos - sem o fastio mentiroso das assinaturas legais - com esses seres multiformes, verdes ou não, mas que são agora o que outrora foram outros irmãos de carne e osso, povoando outros continentes e outras ilhas. São eles que hoje nos podem instruir nas novas cartas de navegação, que dobram o tempo, que o fazem curvilíneo, como quem dobra, realiazado, uma curva depois de visitar o esplendor do Cabo de Sagres! 
    Entrar e sair no tempo como quem entra e sai numa embarcação consoante o fluxo conveniente da maré. Dobremos a página dos «novos mundos ao mundo» por novos tempos ao tempo roto (com ou sem buracos-negros) do mundo, gasto, cheio de dívidas e juros, o tempo que não tem tempo de pagar a conta!
     Sejamos carne e alma, mas carne-viva, inflamada, que deite chama no pó frio que os mornos (vomitados, segundo o Apocalipse) foram amontoando. Para que assim os abutres sem pena (s) de ninguém possam ser afugentados pela Fénix que surge no horizonte como o sol largo e promissor num dia de Verão.

    N.N.D.S.N.T.D.G. Eduardo Aroso, 18-1-2017




      

    quarta-feira, 11 de janeiro de 2017


    PENSAR PORTUGUÊS – TEORIA E PRÁXIS

    Não é difícil crer que os homens de Quinhentos tiveram escola quando se lançaram às Descobertas. Porém, havia como que uma disposição genética ou condição de missão, o realismo e o pragmatismo (nunca órfãos do sonho) que já levavam, conforme sublinha e explicita Afonso Botelho num escrito sobre o realismo dos Descobrimentos Portugueses, mas sobretudo a sabedoria de uma práxis posterior que, a dado momento, afrouxa e não se interroga. Porque esse saber de experiência feito requeria um (re)pensar de novo, um ciclo que teria que passar por um ensino académico humanista, científico ou outro, nunca erguido, como foi o padrão, por terras onde passava a aventura portuguesa; uma escola que continuasse Sagres e Lagos, fosse depois em Freixo de Espada-a-Cinta ou numa cidade com palmeiras e beija-flores, iniciando novo ciclo. Entendemos bem esta questão quando, por exemplo, notamos o ano em que o português, num gesto mais ou menos oficial, criou a primeira universidade por onde passou, quando a essa época já outras congéneres de povos ibéricos ganhavam patine nas suas pedras seculares.

    Não substimando a teoria como corpo essencial – tão cara a Álvaro Ribeiro e tão admiravelmente explicitada – atrever-me-ia a dizer que um «pensar português» não pode estar todavia desvinculado de um «fazer português», quiçá este último estimule então a necessidade intrínseca de uma nova teoria, pois esta se constrói sobre si mesma, ao jeito de espirais. Se é certo que o ímpeto – o meramente compulsivo que se pode confundir com instinto – deve ser refreado pela intuição-sabedoria de saber «A Hora», não é menos desprezível que quem sente alento numa apaixonada práxis pode depois, ou em simultâneo, respigar teoria na própria práxis. Os antigos gregos quando morria alguém perguntavam se tinha vivido com paixão ou intensidade – tema que Herberto Helder traz a um belo poema seu – pois só isso, essa alma operativa pode levar a novas descobertas, a novas travessias, pois os mornos, como diz o Apocalipse, «são vomitados da boca». É possível «pensar português» sem amar Portugal?  

    Hans-Georg Gadamer (1900-2002), o singular filósofo hermeneuta do séc XX, num capítulo intitulado «teoria, técnica, prática», discorrendo sobre os problemas da ciência diz que esta «poderá combater a crença supersticiosa de que ela consegue evitar ao indivíduo a responsabilidade pela sua própria decisão prática». Refere ainda Gadamer que Platão dizia, sem explicitá-lo, que «a liberdade quanto ao próprio saber-fazer outorga liberdade para adoptar outros pontos de vista da verdadeira «práxis», que vão além da competência do saber-fazer e representam aquilo que Platão chama a bondade».

    A intensidade ou paixão, a que hoje poderíamos chamar talvez convicção profunda (os políticos de carreira chamam-lhe militância) pela qual os antigos helenos perguntavam, por certo para saber se teria sido uma vida bem aproveitada, não deve ser confundida com emoções mais ou menos efémeras ao sabor das modas e outras conveniências, mas com aquilo a que, num plano do pensamento, se denomina Ideal, sendo que todavia pode existir congelado, ou naquele calor de alma, o que «vale a pena», como disse Pessoa. Amar Portugal pode consubstanciar teoria e práxis, como se mostra nesta secção dos Painés de Nuno Gonçalves.

    Eduardo Aroso

    10-1-2017

    terça-feira, 3 de janeiro de 2017

    INTERIORIDADES OU OS MITOS DA PORTUGUESA GESTAÇÃO DO TEMPO

    «Teu ser é como aquela fria
    Luz que precede a madrugada»
    (Fernando Pessoa, Mensagem)

    «Vejo sair um fronteiro
    Do Reino atrás da serra»
    (Profecias do Bandarra de Trancoso)

    Se outros não encontrássemos, bastariam Viriato e Bandarra. Menos importantes os dias de nascimento e mais duradouros os averbamentos na memória. Das terras onde as penedias e as urzes são santuários naturais e do céu onde as estrelas brilham dentro das trovas. Figuras que se foram transfigurando em auréola de mito, a desafiar a inteligibilidade das épocas e até o vazio positivista que, de tempos a tempos, provoca a fome do mistério da interrogação do que é ser português. Nucleares e historicamente magnéticos, à distância de séculos, são ainda apetecidos.

    Preservação e expansão parecem corresponder a ideias de interioridade e periferia. O centro de uma circunferência, na sua máxima imobilidade, é susceptível de gerar inúmeras (infinitas) emanações. No Tao, a economia máxima reside no centro, pelo mínimo desgaste, o que no Cristianismo se pode entender pela Face sempre oculta do Criador, o Deus Abscôndito, o Absoluto onde tudo é possível. Pessoa chamou a esta paradoxal vida estática, a inacção, «a maior das ciências». Todavia, na manifestação sensível, o abandono (aparente) da paisagem, o doloroso vazio do despovoamento, são no entanto vórtices de energia que em pousio sustêm e dão equilíbrio à totalidade do país e da nação, pois as suas mais fundas nervuras são irrigadas por essa corrente subconsciente e subterrânea, alma da nossa gente, voz do povo, dragão alado ou Fénix sempre pronta a despertar em tempos de crise. Assim, é possível que um grito se faça ouvir, um clamor atávico como o de um moribundo que sabe que vai morrer e lança o último brado, que faça estremecer todas as aves e as penedias!

    Ao inóspito que afasta e tantas vezes amedronta, Vergílio Godinho chamou «calcanhar do mundo», afinal onde o corpo se apoia. Se por vezes a morte vem, ou parece vir, negar a vida às interioridades ou úteros da terra, certo é que tudo pode recomeçar, tal no-lo diz o cântico de esperança do poeta António Salvado «Erro e progrido neste caos de fragas/onde parou alucinado o tempo».

    Eduardo Aroso
    Março de 2013