domingo, 15 de dezembro de 2019


UM SALMO DE LÍRIOS

Ao poeta António Salvado 

Não se fatigam os lírios
De neles reunir a luz.
Passamos num chão desconhecido,
Imperfeitos para os tocar
Nem os olhos os recebem,
Onde já nem o corpo se curva
Nem as mãos para abençoar.
Finos cálices, recebem o melhor da terra
Outro mel para nos untar.
Tacteia a alma que busca, alheia dos sítios,
Ou fontes onde não sabe beber.

Silenciosa é a oferenda dos lírios,
Crescem em todas as presenças
Purificando a cor nas intenções.
Luz clara como a esperança
Para ocultar ainda
A plenitude do amor.

Natal de 2019
Eduardo Aroso



         SURSUM CORDA E A CELEBRAÇÃO DAS PRESENÇAS
                           V. Nova de Gaia, 14-12-2019

Os textos aos quais Bruno Santos deu o nome de Sursum Corda (Corações ao Alto), parecem querer trazer essa força indefinível, muito antes do anima e animus de Carl Jung ou de qualquer pulsão psicanalítica freudiana ou outra, força que provavelmente se invocava no ritual do cristianismo primeiro, sobretudo antes do século V.
 De que modo o autor nos convida e ele próprio oficia na sua escrita? Um pouco fora do habitual labirinto da dualidade, onde o mundo ocidental tanto se enfrenta e interiormente se degladia, e onde se pode inserir a ideia judaico-cristã de Bem e de Mal, que nos chega nebulosa pela nossa ignorância. O autor de Sursum Corda não podendo negar o conflito entre os extremos, busca o que se pode chamar também uma 3ª via. Ou seja, no movimento, Bruno Santos busca a espiral.
Textos do dia-a-dia onde, dentro do pragmatismo de muitos deles ressalta um certo imprevisto que pode surpreender os que esperam uma conclusão na atmosfera do «mainstream». Ou seja, há a atitude consciente de saída do habitual «pensamento que não pensa».
Em termos numerológico: o UM, vaga unidade, ou temas (teses) que vulgarmente não se tomam como deve ser; o DOIS, o autor, reconhecendo-a, ousa sair dessa dualidade «o inferno do mesmo» (como aponta Byung-Chul Han) e busca o TRÊS. E não parece fazê-lo como ousadia de síntese acbada de conhecimento/sabedoria dessa tríade, mas como acto criativo e por isso libertador do já citado  «pensamento que não pensa». Só por isto, vale a pena. O que importa é sair do labirinto.
Tomemos então SURSUM CORDA ou Corações ao Alto. Ajudemos a levantar o mundo.

V. Nova de Gaia, 14-12-2019
Eduardo Aroso

domingo, 8 de dezembro de 2019



A TERRA NÃO EMIGRA ©

Foram-se para o mundo
Como os dias
Que não se apanham mais.
Levaram o destino consigo,
Poucos móveis e muitas fotografias
Essas coisas estranhas que nas entranhas
Têm também o coração
Que bate para além do corpo…

A terra não emigra,
Corpo caridoso
Recebendo qualquer um de braços abertos.
O chão não emigra,
Porque se mantém no seu posto de vigia,
Ele que formou os ossos da infância
E está disposto a recebê-los já gastos.
Mas quando a fogueira ainda se acende
A terra dá flor com o aroma
Carregado sobre as lápides da memória.

Eduardo Aroso ©
6-12-2019

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU VIOLÊNCIA GENERICAMENTE UNIVERSAL?

Parece ousado o título deste texto, porque pode dar a impressão de quem o escreve diluir ou deslocar o problema, daquilo que, bem visível e próximo, nos choca diariamente. Todavia, uma reflexão mais profunda poderá buscar causas remotas no que o eminente filósofo Byung-Chul Han aborda em «Topologie der Gewalt» (Topologia da Violência), tradução e edição/Relógio d’Água, obra que deveria ser, no presente, (quase) obrigatória em muitas áreas de estudo. O autor faz uma análise em parâmetros muito abrangentes e progressivos, desde tempos mais recuados, passando na sociedade da era industrial, no capitalismo clássico, até aos tempos de hoje do «burnout». Em síntese, a violência passou de níveis externos para níveis internos, «mantém-se constante. Simplesmente se desloca para o interior. “A decapitação” na sociedade  da soberania, “ a deformação” na sociedade disciplinar e “ a depressão” na sociedade do rendimento são estádios da transformação topológica da violência. Sofre uma interiorização, torna-se mais psíquica e, nessa medida, invisibiliza-se».

Este tornar-se invisível – ou na linguagem popular o verniz e as boas aparências que não deixam de acoitar cargas tremendas prontas a explodir, de tal modo que nem sempre o detonador consegue escolher o local e o tempo mais propícios para o fazer! Sobre este movimento nefasto inerente à condição humana, Byung afirma ainda como chegou ao presente: «As execuções desenrolam-se em lugares aos quais a comunidade pública não tem acesso. A pena de morte deixa de ser um espectáculo. (…) O palco da violência sangrenta que caracteriza  a sociedade soberana, cede lugar a uma câmara de gás limpa e exangue, estranha ao olhar público. (…) executa-se como uma aniquilação surda e muda.» O autor alarga a sua visão do problema, referindo-se às forças do terrorismo que «também não agem em termos frontais, mas dispersam-se de forma viral e atuam de maneira insível» e «os vírus digitais, que se dedicam mais a infectar do que a atacar, quase não deixam rasto que indicie claramente o infractor».

A actualíssima síndrome do “burnout” é  «a relação tensa, de sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos. Do mesmo modo, o sujeito exausto e depressivo do rendimento atormenta-se a si mesmo. Está esgotado, farto de si mesmo, da guerra que trava consigo mesmo». Paradoxalmente, ao contrário do que seria suposto, há ainda a força tremenda que desemboca ou na violência sobre o outro, ou no suicídio, uma forma de violência contra si próprio, no interior para o interior.
  

Na opinião de certos autores, a violência está associada ao poder, parecendo, mais objectivado no espaço doméstico, porque escondido dos olhos da sociedade e da lei. Essa explosão leva-se a cabo não só pelo sujeito com mais força física, como pela intimidação, uma outra forma de violência mais lenta e branda, mas não menos cruel.
Todavia, Byung faz uma distinção: «enquanto o poder constrói um “continuum” de relações hierárquicas, a violência gera cortes e ruturas. (…) O poder caracteriza-se por juntar e encaixar, a transgressão e o delito, em contrapartida, definem a violência. O poder inclina-se sobre o outro até o submeter, até o encaixar. A violência inclina-se sobre o outro até o quebrar».

Nesta linha de pensamento, a interiorização desse mal estar terrível acaba numa tremenda fístula psíquica e emocional que, como é óbvio, rebenta mais facilmente no âmbito doméstico, essa mesma violência que, por exemplo, no mundo laboral já só pode agir como intimidação seja qual for a sua espécie. Se o patrão ou chefe hierárquico, age assim, não é por uma questão de (verdadeiro) poder, embora podendo valer-se da sua deturpação, mas porque é interiormente violento.

Eduardo Aroso
4-12-2019



sábado, 30 de novembro de 2019



AS DUAS ROSAS©

A rosa de Cesariny
Não é a Rosa de Pessoa.
Gémeas, vivem perto.
A do Mário é de espuma
Vai e volta de frescura.
A do Fernando é verbo
Inaudível para uns
Para outros não.
E contudo soa.

Eduardo Aroso©
Agosto de 2019

sábado, 23 de novembro de 2019


A ESTRANHA (OU NÃO) NATUREZA HUMANA E A MÚSICA

Todo o conhecimento serve à diversidade do ser humano para o seu viver. Mas entre ciência e arte há algum mistério que ultrapassa as meras duas “gavetas” onde se poderiam arrecadar cada um destes saberes, como conhecimentos diferentes, sobretudo na actual era hipertécnica. O deslumbrante é que escutamos hoje uma música de Vivaldi ou Bach com uma necessidade bem diferente da leitura de um invento científico desses idos 3 ou 4 séculos passados. Então a música é mesmo uma necessidade não ultrapassada!
 Byung-Chul Han, na obra «A Salvação do Belo», diz-nos que «o belo é um esconderijo. A ocultação é essencial à beleza. A beleza transparente é um oximoro», o que nos poderia levar legitimamente a especular nessa ocultação da essência da música que fica para além do som ainda que organizado funcionando como um expositor. A ideia de tempo, acima referida, parece também ocultar (guardar) a beleza seja a da música, da arte de Leonardo da Vinci ou daquilo que há milhares de anos foi desenhado nas grutas de Altamira e ainda hoje suscita o nosso espanto.
Eduardo Aroso
23-11-2019

quarta-feira, 20 de novembro de 2019


           AINDA AS CAPELAS IMPERFEITAS OU A VERTICALIDADE APONTADA ©

A atitude monástica espiritual do românico é de alheamento da luz exterior, pese embora, para sobrevivência dos que habitavam o mosteiro, a contraparte mundana do amanho da terra de consequente exposição solar. É uma atitude religiosa nocturna no sentido de subjectividade perante Deus, sem atropelos do mundo sensível, que tem na luz do sol um sinal forte. Talvez na busca da memória helénica esquecida, o alvorecer do gótico trouxe a luz para dentro do templo através da arte dos vitrais que, entre a penumbra e a emanação solar, proporcionava o ambiente ideal de quietude. Além do mais ia ao encontro do arquétipo da construção do templo cristão ditada pelos pontos cardeais.
As Capelas Imperfeitas do Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), na singularidade arquitectónica portuguesa (tal é o caso também, por exemplo, do Mosteiro dos Jerónimos, no chamado «estilo manuelino») apontam para o futuro de um modo que se poderia dizer «a céu-aberto»! No enigma que as envolvem, o de nunca terem sido acabadas, constituem um espaço mínimo que não é menos do que uma bússola apontando a rota das estrelas, ou seja, a verticalidade perdida de Portugal no final da 2ª Dinastia. Depois de percorrido o espaço planetário – sentido mais horizontal da vida - resta a Portugal «cumprir-se» também olhando na vertical, embora os navegadores já o fizessem noutro contexto. As Capelas Imperfeitas parecem ser o sinal para o que mais tarde Fernando Pessoa também viria a chamar a atenção quando levantou o horóscopo de Portugal, colocando Peixes (signo que globalmente nos rege) no ponto mais alto do horóscopo chamado Meio-do-Céu. À imagem dos próprios oceanos que tendem sempre a ir além de limites rígidos, com Peixes na sua relação com os mares, é difícil marcar limites ao que Portugal pode ainda ser. Por outras palavras: é-nos impossível deixar de sonhar, ainda que os ventos fétidos contra o sonho soprem constantemente entre nós.
A observação deste importante pormenor do signo Peixes estar colocado no Meio-do-Céu do nosso horóscopo, não escapou ao filósofo António Telmo (1927-2010) que na sua magistral obra «História Secreta de Portugal» (1977) tomou o tema de Pessoa para uma nunca feita hermenêutica da História de Portugal à luz do que o poeta de Mensagem e astrólogo colocou em traços gerais, porque –estranhamente, ou não – Pessoa apenas coloca os signos e graus no início das respectivas casas, e não planetas, como se ocultasse exactamente quando é que Portugal nasceu. Tentando corresponder ao convite do Pedro Martins para prefaciar o volume VII das Obras Completas de António Telmo «O Horóscopo de Portugal», o que muito me honrou, pude apreciar a sageza do filósofo combinada com uma invulgar intuição astrológica, que menos aproveitou do que a sua via filosófica, o que se compreende, ainda que Telmo tenha deixado trabalhos astrológicos interessantes de certo significado. No volume VII diz a dado passo, referindo-se à chamada progressão do Sol: «ascende até ao Meio-do-Céu pela dinastia afonsina. Aqui tem Portugal o seu trono, onde se sentou em 1385 D. João Mestre de Avis». Neste ponto mais alto (zénite) do horóscopo com a Ínclita Geração dá-se o início da Expansão ou era oceânica. Eis a razão maior de olhar sempre o ponto alto, ideal de Portugal por cumprir, pelo que as Capelas Imperfeitas, em certo sentido, tenham a sua incompletude, uma ainda não finalização, que se poderia supor pela ausência da cobertura. Todavia, o não haver tecto talvez não seja obra do acaso, “descuido” no qual não se ousou tocar. Quase paradoxalmente, dir-se-ia que, numa espécie de contraponto, é impossível não nos vir à memória as palavras convictas do mestre Afonso Domingues, que dentro do mosteiro se referia a outro cenário no espaço quando proferiu a célebre sentença: «a abóbada não caiu; a abóbada não cairá». A Grande Obra continua.
Eduardo Aroso
19-11-2019


quarta-feira, 30 de outubro de 2019



MAR DE LAMPEDUZA ©

Aquiles voltou.
Regressou da História
Célere além das aves,
Imitando a esperança
E soprou nas águas
Para levar rostos famintos
E olhos que não distinguiam
A noite do dia, a dor do destino.
Aquiles soube da surdez ao longe
E provou o amargo da derrota.
Chegou de outro modo
E não foi para retomar
A tese difícil do pé.
O amor reforçou-lhe o tendão.
Triste e imortal pela vontade
O seu calcanhar sangrou.
E Aquiles então chorou.
  
Eduardo Aroso ©
Verão 2019

quinta-feira, 24 de outubro de 2019


OUTONO EM BAIXO-RELEVO ©

O vento passa rente ao chão,
célere
e gémeo
dos pés de Mercúrio,
Segue para os montes
soberanos nos cumes.
Tocou as folhas secas
depois húmus.
Junto à terra
a metamorfose.
é o chão que varre o chão.

Eduardo Aroso
Outono 2019

sábado, 19 de outubro de 2019


CENA DAS MENINAS ©

Três crianças passam.
Não se sabe se são irmãs
Ou inocentes de tal modo
Que a fraternidade as conduz
Leves e ágeis pelo passeio.
É mais risonha a manhã,
A brisa ganhou aroma.
O vento e a poeira são destino
No seu corpo vendo o sol
Pelos rasgos do vestido
E os labirintos da privação.
Todas são enigmas de recomeçar
Contra a surdez de vivos-mortos.
A orientação delas é centro do mundo.
Três crianças passam.
Não são as «meninas de Velázquez».

Eduardo Aroso ©
12-10-2019

domingo, 6 de outubro de 2019



O cardeal poeta e profícuo escritor D. José Tolentino Mendonça tem, a partir deste momento, o ensejo soberano (o único depois da época de Fernando Pessoa) de, com a sua vasta cultura  e talento, contrariar - ou mesmo negar – o que o poeta de «Mensagem» afirmou sobre a relação (natureza) de Portugal e da Igreja de Roma. Mas só o futuro o dirá. Acresce a particularidade ou paralelismo com os políticos portugueses que vão para instituições europeias, vistos pelo povo com as melhores expectativas quanto aos benefícios que possam daí advir para a nação mais ocidental da Europa. Essas expectativas têm sido goradas, pois a verdade é que também pelo facto de na cúria romana ter estado um papa no longínquo passado e das nossas relações com o papado, nada disso nos livrou, por exemplo, da Inquisição e, no caso político, da Troika e de sermos o país dos experimentalismos do FMI.
Mas ser português não é ser universal, como Agostinho da Silva e outros afirmaram? Não é sermos actores da História, contada de outro modo, que é a natureza do Homem português, patente em «Peregrinação» de F. Mendes Pinto? Claro que sim.
O que parece é que, seja agora no caso de um prelado (oxalá seja excepção) ou de vários políticos portugueses, a esperança sebástica - a que deveria cumprir-se aqui – parece inverter-se, e assim os “desejados” são apenas para os outros. A globalização é do mundo do dinheiro e do controlo pelos satélites. Contribuirá o novo cardeal para que no seio da Igreja portuguesa se fale, do Pe. António Vieira, da poesia de Frei Agostinho da Cruz, das teses de Orlando Vitorino e de Leonardo Coimbra sobre a relação teologia-filosofia e de muitos mais temas afins? Só o futuro o dirá.

Eduardo Aroso
5-10-2019


quarta-feira, 2 de outubro de 2019


APRENDIZES DE GAMAS, MAGALHÃES E CABRAIS©

Sem carteira profissional e com bússolas avariadas (embora com gps muito pessoais) correm numa agitação de quem anda a fazer estágio para comandante de embarcações. Bebem um copo ali e outro acolá, e dão dois dedos de conversa. O seu lugar deveria ser nos estaleiros da nação, porque também aí se despacha correspondência e se desempenham outras tarefas. Trabalho de fundo seria mesmo ver se o casco do navio não deixa entrar água. Mas a obsessão pelo estibordo e bombordo (direita e esquerda da embarcação) leva-os a estados maníacos, e cada qual dizendo que um dos lados do navio é o mais importante, querendo fazer dele proa! Isto não fica bem numa classe profissional, ainda por cima de estagiários, que praguejam ainda antes do navio zarpar! Cada qual quer ter a façanha de chegar à Índia, isto é, quer a Índia para si: dispensando a canela e o marfim, pretendem apenas o ouro e, claro, para os familiares, o lugar de contador-mor nas alfândegas. Esquecem-se que a Índia já não é a do mapa, mas a que se pode construir no chão de cá, onde, tantas vezes, se fazem estranhos consentimentos.
Este fim-de-semana vão desfilar na “passerelle”, e ainda bem, pois se não houvesse passerelle seria muito pior…  Não deixe ao menos de dizer quem é que é vai mais bem vestido e quem, em caso de naufrágio, pode impedir de entrar água no navio.

Eduardo Aroso ©
(em dias de Interregno)
2-10-2019

sábado, 28 de setembro de 2019


SIEGFRIED E S. MIGUEL ARCANJO

Imortalizado na obra de Wagner, Siegfried é porventura o herói mais destemido dos mitos nórdicos, pois nem Wotan o chefe dos deuses, o impediu de ir rumo à verdade. É importante notar que os da mesma estirpe de Siegfried eram levados pelas Valquírias que conduziam os mortos que tombavam valorosamente no campo de batalha, o que nos deixa a pensar se nas presentes batalhas (embora a maioria delas não seja de espada de metal) as Valquírias ainda se disponham à sua nobre missão de conduzir à luz da verdade aqueles cuja coragem não os deixa ter medo. O que se deve sublinhar é que o intenso amor pela verdade é que expulsou o medo do coração de Siegfried.
Na tradição cristã ocidental S. Miguel Arcanjo (que se confunde com S. Jorge, venerado pelos britânicos) parece ser o “gémeo” de Siegfried, no seu atributo divino de coragem superlativa para matar o dragão, entidade que – seja qual for o simbolismo que dele se tome – o ser humano deve dominar para prosseguir na sua ascese espiritual. O dragão não é visto exactamente do mesmo modo nas várias culturas, sendo certo que constitui uma dificuldade extrema que deve ser ultrapassada se quisermos prosseguir na senda. Desde a ideia mais ou menos obscura que há no conceito de «Sombra», inerente a cada pessoa, perfilhado por certas correntes de psicologia; passando pela tremenda força-energia que existe na base da coluna vertebral (kundalini) que, despertada de modo incorrecto, pode ter um efeito nefasto; até à medonha e terrível entidade chamada «O Guardião do Umbral» que todo o verdadeiro Iniciado deve enfrentar e vencer.
Sendo inegável a beleza da narrativa de Siegfried, bem consagrada na poesia e na música, ainda assim prefiro São Miguel Arcanjo, pois, imbuído no pensamento ocidental, está mais próximo da nossa compreensão consciente, exaltado ser hagiográfico capaz de dominar o Dragão enquanto sinal de qualquer tipo de Mal.

Festa de S. Miguel Arcanjo, Setembro 2019
Eduardo Aroso

quinta-feira, 26 de setembro de 2019


IN MEMORIAM DE TODOS©

Que olhos eram esses
Que olhavam o chão e as raízes?
Terra prometida
Era a que vinha de pais e avós,
Não havia outra tão segura.
Garantidos eram sete palmos para todos.
O ajuste dos braços, o ritmo
Levantar e entrar na terra
O único tesouro
A enxada, uma lanterna.
Respirar já fazia crescer talos e folhas.
O suor água-benta quando vinha
Setembro para acrescentar sangue ao sangue
Carne à carne.
Só depois repousavam as águas das fontes.
O que às vezes os olhos choravam
Não se desperdiçava nos frutos
O destino feito de melaço e ervas amargas.
Que olhos eram esses que olhavam a terra?

Eduardo Aroso©
12-09-2019


quarta-feira, 25 de setembro de 2019


A TRADIÇÃO PORTUGUESA TEM RAZÃO SOBRE O SENTIDO FUTURISTA DA CRIANÇA

«O homem e a hora são um só» Fernando Pessoa
«The childhood shows the man, as morning shows the day» John Milton

As últimas notícias sobre o equilíbrio climático colocam-nos em presença de uma situação mundial, tão emergente como invulgar, tendo como protagonista uma adolescente que não constitui uma mera história de bairro ou de notícia fugaz, mais ou menos predadora da fragilidade da criança, e que daqui a pouco tempo possa ser esquecida, mas daquilo que Fernando Pessoa caracteriza com uma certeza fulminante: «O Homem [leia-se, obviamente, o ser humano] e a hora são um só». E sejam quais forem as condicionantes e a panóplia de interesses que possam rodear Greta Thunberg, atingiu-se o «ponto sem-retorno». Tendo ou não controlo emocional na radicalização das suas palavras (diz-se que tem síndrome de Asperger e não só), o certo é que bastaria pensar na capacidade de mobilização dos jovens à escala mundial, algo que nenhum político ou cientista pode fazer.
William Wordsworth (1770 – 1850) disse: «The Child is father of the Man», parecendo até ser pai de mudanças políticas necessárias. Antes, John Milton (1608 – 1674) tinha escrito: «The childhood shows the man, as morning shows the day». António Quadros, em «Portugal Razão e Mistério», discorrendo sobre a cerimónia do Bodo e da Coroação nas Festas do Espírito Santo (no reinado de Dinis e Isabel), citando Manuel Breda Simões, diz que a tradição tomou a criança para a chamada Tripla Coroação (ritual que singularmente ainda hoje se realiza no Penedo-Sintra), pelo que a criança «assumiria o papel de mediador… presença do ciclo do perpétuo rejuvenescimento…o Menino-Imperador, expressão da infância presente, faz-se acompanhar da infância passada e da infância futura», o que uma quadra anónima não desmente: «Uma criança se ergue/com critérios de justiça./ Acordai, homens, acordai/ p’ra esta nova milícia».
Desde que o ser humano, pelo aperfeiçoamento tecnológico foi sendo capaz de aumentar a sua eficácia de ganhar dinheiro com mais rapidez, explorando a Natureza (e outros seres humanos), como se ela fosse um ser morto, caiu no atoleiro do materialismo onde agora se encontra. Portanto, a vontade política, mesmo que consensual no que toca a fazer leis na defesa do planeta, não basta, porque o cerne do problema é mais complicado e, diga-se, é mesmo de ordem filosófica e ética, na base da economicista. Problema que podendo atenuar-se um pouco, com decretos e alterações nas constituições, não resolve o que já está bastante enquistado e acumulado. Ouso afirmar que o sentido simbólico que existe em Greta Thunberg, - tenha ela cara de zangada ou não, seja ou não motivo de interesses - é a ultima esperança da humanidade, na questão ambiental. Se assim não for, o mundo está perdido, porque nos adultos já ninguém acredita.

Eduardo Aroso
24-9-2019


sexta-feira, 16 de agosto de 2019


«NO PLAINO ABANDONADO…» (1) ©

A conversa habitual é o baixo nível nacional. Este parece ficar cada vez mais longe da guinada a que a consciência do país deveria estar sujeita. Uma espécie de trambolhão sem partir a cabeça. No café, dos bancos de jardim até às televisões, um cansaço como quem regressa de uma viagem que não teve começo. Como dizia o saudoso José Santos Viegas, ninguém aguenta uma conversa interessante durante mais de um minuto. Cansa a falta de assunto que valha  a pena e mais atordoa certa linguagem dos que se acham no direito que os ouçam.
 Nunca como hoje as elites do espírito foram tão urgentes para evitar o “microplástico” que há no pior da nossa democracia, pois qualquer sistema gera desperdícios. Isto é, a proliferação descontrolada do banal como sensação de direito adquirido. Sem imposições, as elites do espírito (que não exactamente certas elites  académicas/culturais) são vigilantes e necessárias ao jeito do fermento para levedar a massa, seja qual for a farinha. Atravessam gerações, fazem escola geralmente fora dos corredores oficiais, afastadas por aquele princípio de normalização de que o sistema tanto gosta, e sufocadas pela exacerbação mórbida da última palavra que Camões escreveu em «Os Lusíadas». As verdadeiras elites – há que dizê-lo – estão num plano bem diferentes das oligarquias que usam e abusam de privilégios, e do execrável «snobismo» daqueles que, não os tendo, exibem conhecimento, valor e sabedoria.  
Todavia, é reconfortante saber que há ainda restos do Portugal profundo, dos cerca de mil abraços diários de pessoas há muito ausentes e que, no reencontro, choram de emoção. É isto que vai resistindo como a Torre de Pisa que, apesar do perigo, não cai.

Eduardo Aroso©
16-8-2019

sábado, 10 de agosto de 2019


 INVICTAS ÁGUAS©

O rio trazia-me silenciosos queixumes
das encostas de uvas e desejos
dos dias quentes para a doçura.
Mas aqui Agosto é sempre um paraíso
margens, esteios firmes
e beijos calmos da lonjura.

Lá ao fundo na foz 
acende-se a luz dourada
quando o dia se cumpre sem cansaço
no sereno altar do fim de tarde
sobre as águas mansas e invictas
onde só o mar as vence com um abraço.

Eduardo Aroso©
Foz do Douro, 9-8-2019

domingo, 4 de agosto de 2019


Aforismos (50)

O problema é que o Estado deixou de ser o «somos nós». Partido e repartido entre interesses partidários e dos amigos «que ficam ao portal…», somos nação, em desgaste, e pátria, para aqueles que a assumem.

Eduardo Aroso
4-8-2019

sábado, 3 de agosto de 2019



AFORISMOS (49)

Não é a emoção inconsciente de culpa e a visão economicista da ecologia actual que podem resgatar a relação do ser humano e da Natureza, que o Romantismo nos legou, antes da máquina tomar conta da vontade do Homem. Amar a Natureza é muito mais do que limpá-la.

Eduardo Aroso
3-8-2019

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

AFORISMOS (48)

Deixa-te tatuar com a água do mar. A pele é para os deuses.

Eduardo Aroso
 2-8-2019

quinta-feira, 11 de julho de 2019



HINO DA EUROPA OU A EUROPA SEM HINO?

Mais do que simplesmente representar a hegemonia alemã, aquilo que se designa por Hino da União Europeia representa, antes de mais, uma subordinação à inércia da não criação de um hino que expresse a ideia de uma Europa unida. Mas talvez não tenha sido por acaso que esta apatia existe, pois – trazendo um pouco a imagem -  assim como o azeite não se pode misturar com a água, seria, na melhor das hipóteses, difícil (mas não impossível) haver um verdadeiro hino que espelhasse as diversidades culturais do nosso continente. É indiscutível que, de um ponto de vista realista, perante o cenário mundial, é vantajoso uma Europa unida. Também indiscutível é a imortal Ode à Alegria de Beethoven. Sempre que escutada nos faz vibrar de esperança, mas é triste que se tenha transformado no símbolo do país onde se ancora o Banco Europeu e da economia que tem como almocreves Portugal, Espanha e Grécia. Aristóteles disse que «haverá sempre escravos» e nesta época calhou-nos a nós. Ainda que seja imaculada a Ode à Alegria, a uma nova realidade histórica deve corresponder um hino próprio que expresse mental e sentimentalmente as nações europeias sobretudo de quadrantes de sensibilidades distintas, como, por exemplo; ibéria, norte da Europa, centro e nações eslavas. Ou então a União Europeia não é realidade histórica, tão-só um contrato que dura umas décadas. E, obviamente, a solução não seria colar a Ode à Alegria a uns compassos da Marselhesa!  

Eduardo Aroso
10-7-2019



segunda-feira, 8 de julho de 2019

RECEITA PORTUGUESA (LINGUÍSTICA)
Não ceda às palavras dos dicionários digitais, de acordos ortográficos, ignore algum estilo jornalístico e as frases de rodapé que aparecem nas televisões. Não dê ouvidos à oralidade daqueles que começam sempre com «efectivamente…» quando nem sequer há efeitos nem efectivos! Na hipótese de não poder seleccionar, a preceito, lave tudo, deitando fora o que já nada se aproveita. Deixe a enxugar durante a noite. Se houver lua e aroma de algum pomar, tanto melhor. De manhã, verá que as palavras brilham, podendo soar com o mesmo rumor antes da banalização do acto sagrado da comunicação.
Eduardo Aroso
Julho 2019

quinta-feira, 4 de julho de 2019


HOJE E SEMPRE ©

A sublimação dos caules
É a celebração mais alta.
A seiva e os espinhos
Mostram-se nos passos
Na busca do bodo vegetal.

Move-se o povo  em silêncio
Pela palavra perdida
- nunca escrita -
Nas dobras ocultas dos livros.
Liberte-se a fome e a sede
Sobre os jardins de água.
As rosas ainda amanhecem
No plasma das nascentes.

Eduardo Aroso ©
Julho, 2019 


sábado, 29 de junho de 2019

PORTUGAL E OS DISCÍPULOS DO FILÓSOFO SÓCRATES

Diz a tradição que os discípulos do filósofo Sócrates lhe chamavam «atopos», ou seja, o indefinido ou não localizado, o que se pode entender como alguém intocável na sua sabedoria. Não fosse ele humano, do sumo pensador poderiam dizer abscôndito, raro adjectivo apenas quando se trata da mais alta transcendência. Portugal tem sido entendido como Porto do Graal, terra Ophiussa, lugar de Ouroboros, ou, geometricamente e em estilização, nação com a forma de dois quadrados juntos. Onde sensivelmente eles se tocam, está a cidade de Tomar, foco principal da presença templária, irradiante no passado e ainda hoje magnético. À cidade do Nabão e do Convento de Cristo chamou Umberto Eco “umbigo do mundo”, o que equivale a dizer Plexo Solar ou Sol do Mundo, porque dizer umbigo ou sol tem exacta correspondência, quanto mais não seja pela equidistância daquela parte do corpo aos extremos deste.
 Diga-se que a este propósito convém ir um pouco mais fundo na ideia de centro. Para além do que em geometria representa, originando a circunferência - não esquecer que esta deriva do ponto (centro), enquanto este pode existir sem ela – René Guénon, num contexto simbólico, lembra que a ideia de centro «é passível de uma transposição similar, mediante o qual se despoja do seu carácter espacial, que só é evocado a título de símbolo». Ou seja, existindo, o centro pode ser quase ou mesmo «atopos». Seja como for, o centro é o princípio do qual se parte em qualquer direcção e no plano do pensamento para qualquer raciocínio especulativo.
O tão famigerado tesouro dos Templários que tantas peregrinações e rotas tem conhecido, árduos estudos, e longos debates, não parece ser contudo o ouro de melhor quilate – sendo bom para muitos, é pouco para alguns. Tratando-se do metal brilhante, mesmo que bem guardado, poder-se-ia dar o caso de alguém, até por descuido, entrar num subterrâneo qualquer e dar de caras com tanta riqueza, ainda por cima com a vantagem de se poder registar logo as coordenadas no g.p.s. (! ).  A aproximação dos discípulos a Sócrates, mesmo sendo ele «atopos», por certo era lenta como também o tempo requerido para os eleitos de Pitágoras que, antes de se manifestarem, teriam que observar silêncio durante alguns anos. Posto que o tesouro dos Templários não se encontra de um golpe, parece ser mais fácil a aproximação dos que o procuram, do jeito dos discípulos de Sócrates (estando, é intocável), pois o que seja esse tesouro só pode ser uma Gnose (de acesso merecido e por isso consentido), não se encontrando certamente descendo as escadas de um subterrâneo. Dir-se-ia mesmo que ao tesouro se chega metaforicamente subindo as escadas, que poderão ser as do fogo serpentino da coluna vertebral ou outras, como passar incólume nas que servem a Torre de Babel. Tudo isto nos leva, em convergência, à questão nuclear do que é Portugal: de que centro (atopos?) têm partido os raios infinitos dando lugar a circunferências concêntricas de mais de oito séculos. O paradoxo é que, considerando as últimas décadas de Portugal, no balanço final da sua Expansão e a entrada na sociedade por quotas chamada CEE, é natural haver, noutra ordem, quantas vezes insuspeitada, mais uma circunferência onde parecia não existir, até em pequenas coisas do dia-a-dia onde haja um português no mundo.
 O Portugal oculto tornou-se mais invisível? Tudo é possível até mesmo (considerando o último século) a morte de Portugal proferida por Junqueiro e por outros nos dias de hoje. Pelo simbolismo do ponto e da circunferência, é óbvio que actualmente o movimento desordenado se alheia cada vez mais do centro ou propósito, chame-se-lhe ainda razão maior de Portugal. No plano visível é sabido que o centro de decisão (despojado de símbolo)  parece estar mais em Bruxelas do que no Terreiro do Paço, no Banco Mundial ou outro parecido, não nas veras necessidades do município, não se podendo negar que haja, num centro simbólico algures entre nós, alguma “oposição” salutar e equilibradora. Assim sendo, é decerto «atopos», ao contrário dos que vemos diariamente nas televisões. O centro (que pode ser plural) tem os seus sinais em muitos locais do país. Todavia, além do locus, há o pulsar na História e na Língua. Por acaso, ou não, a palavra Centro e Verbo têm as mesmas vogais pela mesma ordem.  
Eduardo Aroso
Solstício de Verão, 2019

domingo, 26 de maio de 2019



REPETIÇÃO DA FÁBULA©

Os cônsules escolhidos regressam sempre
Vestidos de túnicas sobre seda digital.
Treinados no velho império romano
Vieram para engrossar as legiões
Que devem seguir por montes e vales
Ou talvez quietas a vigiar gente.
Têm dejua forte, pratos a toda a hora
E bem servidos…
Só assim há força
Para derrotar os inimigos.
(Césares sucessivos passeiam
Nos corredores
Sem que se mostrem, alheios ao sol).

No débil burburinho dos gorjeios
Muitas aves já não se ouvem
Retirada a amplificação sonora.
A criação é de cordeiros
(Os lobos maus têm o seu covil)
As legiões revezam-se.
Sentinelas da noite
Vigiam atentamente
Hora  a hora
Para que os galos do mundo
Não anunciem a aurora.

Eduardo Aroso©
Maio 2019

quarta-feira, 15 de maio de 2019


DAS MÁSCARAS, DOS (MAUS) ACTORES E AS PLATEIAS DE PACÓVIOS

Em muitas e duvidosas representações de hoje, a inversão da máscara não significa virá-la do avesso, como se faz a uma peça de roupa mal vestida. Posto que está na moda as máscaras serem escolhidas como sendo de preocupadas e edificantes personagens, os que as movem não são, via de regra, confiáveis no que pretendem representar. Quando a máscara cai percebe-se então que são maus actores, ou seja, o que representaram não estava de acordo com o perfil da máscara, o que não deve confundir-se com os eméritos do nosso teatro português.
Na antiga tragédia helena, onde havia a autenticidade do colectivo (a forma de arte humanamente mais completa e complexa, com um envolvimento muito acima das actuais performances), a diversidade da vida obrigava por vezes à representação de figuras pouco simpáticas, ou mesmo opositoras da sociedade e temperadas do cómico. Existia, como ainda hoje, o bobo, figura de papel singular, paradoxal, criticando e corrigindo desmandos, numa linguagem que só a  ele era permitido. O monarca e bem assim toda corte ouviam  dele o que a outra pessoa não se autorizava, sob pena de severo castigo. A conhecia obra de Shakespeare «Rei Lear» apresenta esse primor de bobo, como também, pese embora um cenário bem diferente, «O Pobre Tolo» de Teixeira de Pascoaes.  
Quanto aos bobos, não são os actores do poder político e  económico, pois, como já referido, representam mal. Ainda que de um modo tímido, podemos ser nós os bobos, mas falta-nos a ousadia de ir à corte e fazer de bobos sérios, isto é, cumprindo bem o papel, e depois de tirarmos a máscara, todos ficariam a saber quem são os (verdadeiros) actores, cujos rostos são ainda dos velhos lusitanos, defendo-se dos impostos disfarces do restos do império romano, guerreiros cujas faces podem servir bem a máscara sem truques, actores para o que der e vier…

Eduardo Aroso
Maio 2019         

terça-feira, 30 de abril de 2019



ONDE FICA O LARGO DA PORTAGEM? ©

Procura-se na memória intermitente
Que descansa  longe
Talvez num sofá ou cadeira de rodas.
Chega ali ainda a vaga frescura das tardes
Do Mondego que subia livre na enchente
E arrefecia impiedoso os pés do Mata-Frades!
Ah, nas grades de ferro à beira da água
Arremetia-se com estrondo a liberdade
E o esvoaçar mais largo das fitas era sinal
Que poderia ser outra largada de aves.
Pergunta-se ao neto que escreve no telemóvel
Mas não sabe já o que é o Banco de Portugal
E onde fica a página que se abria extensa
Que ia do Parque até à Rua da Sofia.
Busca-se o sítio do Largo da Portagem
Talvez no Google ou no facebook
Mas a verdade da vida, que escorre e tem aroma,
Não admite, no fim de contas, qualquer truque.
É virgem fugidia essa calçada que não se pisa
Flores, amores-(im) perfeitos regados com espuma de cerveja.
Pergunto pelo verso que já não se escreve
E a assinatura feita no colo da esplanada
Com o rio em frente, primeira testemunha.
No tempo sem assento entra-se e sai-se num instante
Mas ao chão do Largo da Portagem já não se vai.

Janeiro de 2019
Eduardo Aroso©