segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017


DAS REDES…

Hoje as redes sociais deslaçaram-se completamente no passeio da rua sem viva alma, ao ponto de já não chegarem às cadeiras vazias do café. Não se adicionou nem bloqueou ninguém; aquilo era o que havia. Como é domingo, há uma rede cercando a igreja, rede meia partida, mas mais forte à entrada do templo. Não falo nos vendilhões do mesmo, mas dos pedintes. Reparei, mais adiante, que pelos alpendres e varandas, sem as pessoas e flores que noutros tempos havia, é provável que por lá passassem e andassem umas redes invisíveis… claro está. Há mais: as redes dos quintais confundem-se com as silvas. Até as redes dos pescadores estão limitadas; adicionar este ou aquele peixe não é à sua vontade. O certo é que ninguém gosta de ser enredado. Estar na fila é outra coisa. Melhor é voar e deixar o caminho livre para os outros.

Eduardo Aroso

27-2-2017

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

APONTAMENTO ANÍMICO-BUCÓLICO©

Ao poeta António Salvado,
nos seus 81 anos

Os verdes prados insistem
Na rebentação dos dias,
À margem das insígnias da morte
Que alguns anónimos depõem em seres humanos.

Estalam as manhãs
No silêncio entranhado
Da humidade longínqua do Génesis.
A imunidade dos talos
E a seiva escorrendo
Como um grito de vitória
Pegajosa esperança ávida de respirar
Na boca agónica do mundo.

Se há ribombar do aço
Manchando a geografia,
Solta-se uma fonte,
Ave, ímpeto de sair do ninho.
Exaltam-se rouxinóis nos salgueirais
E as velhas alminhas brancas nos caminhos
Ganham aura de catedrais.

Eduardo Aroso©
(22-02-2017
 entre Rio de Vide e Coimbra)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

SOBRE CANONIZAÇÃO
(escrito algures entre Miranda do Corvo e Coimbra)

Como a palavra indica, o que está ou se submete a um CÂNONE. Um cânone musical é uma composição que requer uma certa estrutura sob pena de não ser cânone e não poder ser cantado ou tocado como tal. Há muita gente por esse mundo fora que viveu (e ainda vive) num rigoroso cânone de pobreza, de dignidade, de carácter, com abnegado esforço, mantendo-se fora de favorecimentos políticos, religiosos ou sociais. Vida canónica de um modo discreto quando não anónimo.

A minha avó, mulher da terra arável, que tinha como despertador o canto dos primeiros pássaros da manhã, que cuidava do pasto e da rega como outros cuidam das acções em bolsa, viveu no cânone do suor do rosto. Foi portanto uma mulher canonizada sem processos de milhares de páginas a justificar, e se justificação houvesse de outra ordem, ela teria um coro de árvores e de animais que deporiam a favor; a voz da terra que, na época própria, ela encarava como se fosse um altar onde também na Primavera e no Outono havia autênticos milagres. Quando era mais jovem eu já me tinha apercebido de que a minha avó era santa, porque viveu escrupulosamente o cânone do seu destino.

Eduardo Aroso
(9-2-2017)


domingo, 5 de fevereiro de 2017

AFORISMOS (44)

Aquilo que se foi introduzindo na mente do ser humano da actualidade como lógica irredutível para praticar a eutanásia, corresponde, na ciência, à manipulação do transgénico enquanto início de um processo de grande alcance, ainda indeterminado, das possibilidades da genética; e também não anda longe daquele pensamento que ainda tem o homem como “rei da criação”, isto é, o ser criado, não admitindo seres de dimensões diferentes da sua, entende que (desafiando o Criador) sabe tudo sobre a vida, para dela dispor não no sentido de legitimamente a conduzir no possível livre-arbítrio, mas de a criar de raiz, como se também fosse capaz de criar os mares, as serras, o movimento dos astros no mais belo quadro que é a recepção diária do sol, o fogo primaveril que brota anualmente sem a mão do homem.

 Eduardo Aroso

 5-2-2017