sábado, 29 de julho de 2017

MULHERES DE RIO DE VIDE ©


Elas tinham o dom de espremer a vida
Que a muitas só chegava gota a gota.
O sol era alto e forte
A broa um milagre diário
Do resto a fartura pouca.
Só nas manhãs de Maio
Havia perfume nos seus cabelos
Quando vinha a aragem sobre eles
Junta com o cantar do gaio.
As horas, fundas
Tal era a enxada na terra.
Dava-se conta delas
Pelo sino
Ou pela ovelha que dava sinal.
Levavam os filhos
Que ficavam sobre o avental
A alegria por cima
E a tristeza por baixo.

Essas mulheres são hoje invisíveis,
Sombras quietas de memória.
Ninguém as apaga.
Ninguém as derruba.
Mais firmes que as colunas de Hércules!

20-7-2017
Eduardo Aroso


terça-feira, 11 de julho de 2017


ÉPICA ÚLTIMA©

Agora os anciãos longe dos sinais de trânsito
Já não pedem à beira das estradas
Nem vão para as tabernas recolhidas nos museus.
Jogar às cartas é uma fase intermédia
E dar de comer às pombas no jardim.
O tempo de pedir esmolas
Passaram-no aos mais novos
Os que há e, quem sabe, os que virão…
O ímpeto para a sobrevivência
Está em aceitar o que lhes dão.
Vivem alheios e sem subsídios
Para a guerra que se trava dentro deles
A das sinapses no instinto de defesa
Sem palavras de carinho que as liguem.
Por fora a liça é visível
Sem cremes de remedeio:
Ficaram rugosos todos os mapas-do-mundo
A vida some-se para ficar incrustada noutro lado.
Oh, milagre derradeiro! Raramente cai no chão
Ali aos pés uma estrela vinda do espaço longínquo
Lá onde talvez se entenda melhor o que é a vida.
Quando isso acontece os anciãos iluminam-se
Como a frágil esperança dos tratados de paz.
E até na rugosidade da pele se percebe
Uma serena e iluminada explosão
De uma espécie de Big-Bang que logo se desfaz.

Eduardo Aroso©
11-7-2017


segunda-feira, 3 de julho de 2017


O FACEBOOK COMO CONFESSIONÁRIO

Nietzsche observou, no seu tempo, que o jornal diário tinha vindo substituir o hábito para muitos da missa matinal. Ainda que o papel impresso para notícias do quotidiano continue a existir, mais de um século depois, as gerações novas rapidamente o têm substituído pelo tablet ou pelo telemóvel numa mão enquanto a outra se ocupa de uma bica e de uma nata. Num lapso de tempo, o mural de muitos utilizadores tornou-se numa espécie de confessionário. Um estranho lugar onde, entre outras coisas do expediente, se lançam mágoas mais ou menos dissimuladas. Mas também atitudes tipicamente neomedievais de trazer pessoas ao pelourinho para lhes aplicar a malhação, como aliás acontece por outras vias. Falamos de um espaço livre, onde cada um coloca (à excepção de alguns interesses de publicidade comercial) assuntos do seu gosto, e que por isso revela a natureza do seu utilizador. Como disse um sábio «se queres conhecer uma pessoa, observa o que ela faz depois de cumpridas as suas obrigações a que não pode fugir». 
Descontada a alínea barata da fofoquice, é no espaço de hodierno confessionário que o fb apresenta uma das suas características mais interessantes, digna da atenção da psicanálise ou outra área de estudo de observação. No confessionário digital, é certo que o assunto passa a ser público, mais ou menos dissimulado, mas onde se descortina a necessidade de confessar as tensões e problemas pessoais, quantas vezes por causa de cicrano ou beltrano. Nesse novo espaço onde se julga aliviar a alma (podendo mesmo aliviar), a moral é simples: todos os pecados são perdoados desde que se fale verdade, ou pelo menos se faça por isso. Não propagar a mentira já é muito bom. Viva o facebook!


Eduardo Aroso