sábado, 23 de janeiro de 2021

 

DA MÚSICA PARA GUITARRA PORTUGUESA de HUGO VASCO REIS

Diz M.P. Hall que a lira de Terpandro tinha 7 cordas e Pitágoras teria acrescentado outra, o que, na conclusão de uma oitava, abriria caminhos infinitos à música. A evolução da composição musical para um instrumento vai também, de certo modo, em maior ou menor grau, a par da evolução da organologia do próprio instrumento. Muito embora exista música contemporânea tomando instrumentos tradicionais (Ligeti e Stockhausen, por exemplo, escreveram para flauta de bisel), e ainda que o violino mantenha desde há séculos o mesmo número de cordas, seria algo anacrónico numa obra contemporânea para solista e orquestra utilizar-se um violino barroco. Ou o guitarrista Ricardo Rocha interpretar a sua música num instrumento do tempo de Armandinho (Lisboa), ou Carlos Paredes com uma guitarra de Flávio Rodrigues (Coimbra). Diz-se que Carlos Paredes tentou acrescentar uma outra corda aos seis pares existentes da guitarra portuguesa. Desconheço as razões da sua desistência. Nunca é de mais insistir no facto do timbre de um instrumento, aliado obviamente à natureza da música que com ele se cria, poder expressar o “espírito cultural de uma época”. Quando, por exemplo, ouvimos «António Marinheiro» ou «Mudar de Vida» de C. Paredes, identificamos uma fase da vida portuguesa, época essa que contém, com muita proximidade, o tempo de seu pai Artur Paredes, responsável pelo salto qualitativo do timbre da guitarra coimbrã que seu filho levaria ao cume. Em literatura sempre se disse que «o estilo é o Homem», ou seja, o escritor ele mesmo. Quando, sem ver, escutamos vários instrumentos é pelo timbre que os distinguimos, mas dentro desta singularidade podemos dizer que há timbres dentro de timbres, gerados também pelo modo de interpretar de cada músico e, num contexto actual, da engenharia electrónica. É minha convicção de que o salto qualitativo da composição para guitarra portuguesa, iniciando o ciclo pós-Paredes, deverá contemplar, a par de outros factores, alguma mínima que seja mudança da construção da guitarra portuguesa, tudo isto levantando questões tais como: é evolução da guitarra portuguesa (instrumento fortemente incrustado na alma do povo) seguir caminhos dentro da esfera do atonalismo mais ou menos académico? Ou assimilar e projectar-se como instrumento emparceirando com a chamada “música ligeira” mais ou menos rock ou jazística? Aquilo que Unanumo classificou num livro inteiro como «el casticismo» coloca-se legitimamente no nosso instrumento português, assunto vasto e complexo para ser aqui debatido. Mas, como disse Antonio Machado, “faz-se caminho, caminhando». Se aquilo que a breve prazo será futuro, com base na construção do presente, esse mesmo futuro se encarregará de colocar tudo no seu lugar. O que ele não perdoa é a quem não cria no presente, na possibilidade única, negando-lhe posteriormente o seu alimento de lento e implacável “metabolismo” de escolha.

Vem tudo isto a propósito da música que Hugo Vasco Reis (n. 1981) teve gentileza de me enviar em gravações CD, compositor-intérprete já com obra afirmada na guitarra portuguesa e outros instrumentos. Sempre que escuto música contemporânea (sendo que nesta existe todavia um vasto espectro) lembro-me de um episódio onde alguém teria perguntado a Picasso o porquê do artista ter desenhado dois olhos num rosto de perfil (A Mulher Sentada). O pintor respondeu, perguntando ao seu interlocutor, que se quisesse ler um romance em língua chinesa, do qual gostasse muito, e não houvesse tradução, o que faria. Resposta imediata: teria que aprender chinês! Eis a questão fulcral da música: a linguagem do compositor e de uma época. A este propósito, Fernando Lopes-Graça em «Introdução à Música Moderna» (Biblioteca Cosmos) escreve o seguinte: «a aceitação da música moderna * tem sido dificultada por uma razão bastante poderosa: a rapidez extraordinária da sua evolução, que não tem dado tempo a que as suas aquisições e inovações sucessivas sejam assimiladas pela maioria do público».

Numa das suas obras de estreia, a «Suite nº 1 para guitarra solo» (in Poema Anacrónico, 2013) Hugo Vasco Reis mostra logo um cunho pouco convencional que viria a imprimir à guitarra portuguesa. Muito embora a tenha tomado, diga-se do “modelo Paredes”, procura novíssimos timbres (sobretudo em «O Espaço da Sombra») a par de estruturas rítmicas e harmonias nada habituais deste instrumento português. Em «Linea (Música Experimental)» numa peça com arco, baqueta e prato, a guitarra entra no que se poderia chamar um máximo “jogo de contorcionismo”, isto é, livre para qualquer devir, um novo poder-ser. Assim, não se trata de aprender chinês, como no episódio de Picasso, mas, como noutras situações de outros compositores, entender (intuir) a sua linguagem; como vai o compositor no caminho, porque ir num caminho é para se chegar a um lugar. O compositor escolhe sempre o (seu) melhor caminho para chegar. Se o ouvinte gosta ou não, se demora pouco ou muito tempo a entender, isso é outro assunto, situação de que a música composta e ouvida numa mesma época nunca se livrou.

* Neste contexto, F. Lopes-Graça não coloca a questão da modernidade e contemporaneidade.

Eduardo Aroso©

Janeiro, 2021

sábado, 16 de janeiro de 2021

 

A SEGUNDA MORTE DE MIGUEL TORGA

Como em todas as noites, entrei no mundo onírico, esse que não nos rouba a vida, mas tira a memória das viagens. Às vezes, em jeito de confirmação, o sonho ilude nas imagens distorcidas. Porém, desta vez, recordo a nitidez e a intensidade de sentimento que existe nesse mundo, livre da inércia da matéria, lá onde a velocidade é a do pensamento. O primeiro ser que encontrei foi Miguel Torga. Nessa noite eu tinha relido «Portugal», uma exemplar aguarela literária do nosso país de cima abaixo, do  peculiar portuguesismo, como outro Miguel (de Unamuno) diria de Espanha no seu «casticismo».

Ao modo como o poeta tinha o seu semblante e a paisagem soberba que avistava, eu não podia fugir. Dirigi-me a ele, ansioso, ao mesmo tempo deslumbrado com tudo que via. Torga, nem me deu tempo de confessar a minha admiração pelo que me estava a acontecer, falou para mim como se eu fosse um vizinho de lá! Apressei-me a dizer-lhe que estava a ter um sonho consciente, e que portanto ainda estava por cá. Ele entendeu. O autor de «Contos da Montanha» estava em cima de uma grande fraga etérica, uma espécie de plasma, se é que posso descrever assim aquele maravilhoso rochedo, não alheio de todo ao duro granito quando Torga andava por Trás-os-Montes. Era, paradoxalmente, uma pedra com a mesma forma, mas leve e bela, muito embora com a mesma imponência do mineral da terra. O autor fitava o horizonte de onde se aproximava uma águia com asas reluzentes e solares. Disse-me, como quem informa alguém alheio a tudo aquilo, que lá tudo se movia. Sentir e pensar eram força sem obstáculos. Dessa maneira – atalhei eu – poderíamos ter e ver tudo o que quiséssemos! Replicou-me que não era bem assim, pois, tal como aqui, é a capacidade que dita a eficácia, e que o corpo que deixou era apenas uma sombra de um outro corpo.

De poucas palavras, como sempre foi, o poeta ficava-se a meditar e a olhar uma paisagem onde parecia que a noite não se formaria. E apesar de tanta leveza, o seu rosto era quase transparente e desfalecido, o que para mim não fazia sentido. Explicou-me que lá a intensidade do sentimento e do pensamento tudo vivifica ou amortece. Àquele que em 1995 deixou uma obra eivada de amor pela sua gente, pela sua pátria e pelo país, perguntei a razão da sua agonia. Não me surpreendeu muito o que me disse, ao mesmo tempo que eu sofria com o autor das obras «Diário» e «Poemas Ibéricos». O seu desânimo com o rumo do seu país era total perdendo oportunidades a cada dia. Dor com aqueles que lhe davam palmadinhas nas costas, que tudo faziam para tirar fotos na sua companhia e organizar homenagens, quase sempre sem que tivessem lido meia dúzia de páginas da sua obra. Mas o pior, o mais pungente era a cidade, como ela a via, desfigurada. Falei daquele seu verso, tão belo e de grande alcance, que bem caracteriza o nosso Povo: «mansa colmeia a que ninguém colhe o mel». Amargurou-se ainda mais. Afinal aquele “socialismo à portuguesa» era uma ilusão. Aquilo de deixar de produzir para comprar lá fora os produtos agrícolas, desesperava-o, ele que fora filho de agricultores. Abanava a cabeça quando eu lhe falei do ensino e do serviço nacional de saúde que ele vira nascer.

 Depois, quase já sem me ouvir, enrolado que estava pela dor, desabafava: - falharam em muita coisa, falharam. Por isso estou nesta agonia e já não tardo muito… Disse-me algo misterioso, como quem acreditava que brevemente seguiria um rumo mais alto para uma dimensão afastada de tudo isto, onde, deixada por fim tanta tristeza, só era possível sentir o bom, o belo e o verdadeiro. Todavia, ficando perplexo com as suas palavras «já não tardo muito…», perguntei-lhe afinal se essas memórias já não tinham morrido com o corpo de quem o tinha deixado desde o dia 17 de Janeiro de 1995. - Oh, não. Nem pense. Um dia também vai ver que a segunda morte é a mais dolorosa, é a pior. Depois é que tudo passa.

Eduardo Aroso©

Janeiro de 2021