sábado, 16 de janeiro de 2021

 

A SEGUNDA MORTE DE MIGUEL TORGA

Como em todas as noites, entrei no mundo onírico, esse que não nos rouba a vida, mas tira a memória das viagens. Às vezes, em jeito de confirmação, o sonho ilude nas imagens distorcidas. Porém, desta vez, recordo a nitidez e a intensidade de sentimento que existe nesse mundo, livre da inércia da matéria, lá onde a velocidade é a do pensamento. O primeiro ser que encontrei foi Miguel Torga. Nessa noite eu tinha relido «Portugal», uma exemplar aguarela literária do nosso país de cima abaixo, do  peculiar portuguesismo, como outro Miguel (de Unamuno) diria de Espanha no seu «casticismo».

Ao modo como o poeta tinha o seu semblante e a paisagem soberba que avistava, eu não podia fugir. Dirigi-me a ele, ansioso, ao mesmo tempo deslumbrado com tudo que via. Torga, nem me deu tempo de confessar a minha admiração pelo que me estava a acontecer, falou para mim como se eu fosse um vizinho de lá! Apressei-me a dizer-lhe que estava a ter um sonho consciente, e que portanto ainda estava por cá. Ele entendeu. O autor de «Contos da Montanha» estava em cima de uma grande fraga etérica, uma espécie de plasma, se é que posso descrever assim aquele maravilhoso rochedo, não alheio de todo ao duro granito quando Torga andava por Trás-os-Montes. Era, paradoxalmente, uma pedra com a mesma forma, mas leve e bela, muito embora com a mesma imponência do mineral da terra. O autor fitava o horizonte de onde se aproximava uma águia com asas reluzentes e solares. Disse-me, como quem informa alguém alheio a tudo aquilo, que lá tudo se movia. Sentir e pensar eram força sem obstáculos. Dessa maneira – atalhei eu – poderíamos ter e ver tudo o que quiséssemos! Replicou-me que não era bem assim, pois, tal como aqui, é a capacidade que dita a eficácia, e que o corpo que deixou era apenas uma sombra de um outro corpo.

De poucas palavras, como sempre foi, o poeta ficava-se a meditar e a olhar uma paisagem onde parecia que a noite não se formaria. E apesar de tanta leveza, o seu rosto era quase transparente e desfalecido, o que para mim não fazia sentido. Explicou-me que lá a intensidade do sentimento e do pensamento tudo vivifica ou amortece. Àquele que em 1995 deixou uma obra eivada de amor pela sua gente, pela sua pátria e pelo país, perguntei a razão da sua agonia. Não me surpreendeu muito o que me disse, ao mesmo tempo que eu sofria com o autor das obras «Diário» e «Poemas Ibéricos». O seu desânimo com o rumo do seu país era total perdendo oportunidades a cada dia. Dor com aqueles que lhe davam palmadinhas nas costas, que tudo faziam para tirar fotos na sua companhia e organizar homenagens, quase sempre sem que tivessem lido meia dúzia de páginas da sua obra. Mas o pior, o mais pungente era a cidade, como ela a via, desfigurada. Falei daquele seu verso, tão belo e de grande alcance, que bem caracteriza o nosso Povo: «mansa colmeia a que ninguém colhe o mel». Amargurou-se ainda mais. Afinal aquele “socialismo à portuguesa» era uma ilusão. Aquilo de deixar de produzir para comprar lá fora os produtos agrícolas, desesperava-o, ele que fora filho de agricultores. Abanava a cabeça quando eu lhe falei do ensino e do serviço nacional de saúde que ele vira nascer.

 Depois, quase já sem me ouvir, enrolado que estava pela dor, desabafava: - falharam em muita coisa, falharam. Por isso estou nesta agonia e já não tardo muito… Disse-me algo misterioso, como quem acreditava que brevemente seguiria um rumo mais alto para uma dimensão afastada de tudo isto, onde, deixada por fim tanta tristeza, só era possível sentir o bom, o belo e o verdadeiro. Todavia, ficando perplexo com as suas palavras «já não tardo muito…», perguntei-lhe afinal se essas memórias já não tinham morrido com o corpo de quem o tinha deixado desde o dia 17 de Janeiro de 1995. - Oh, não. Nem pense. Um dia também vai ver que a segunda morte é a mais dolorosa, é a pior. Depois é que tudo passa.

Eduardo Aroso©

Janeiro de 2021

 

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