VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU
VIOLÊNCIA GENERICAMENTE UNIVERSAL?
Parece ousado o título
deste texto, porque pode dar a impressão de quem o escreve diluir ou deslocar o
problema, daquilo que, bem visível e próximo, nos choca diariamente. Todavia,
uma reflexão mais profunda poderá buscar causas remotas no que o eminente
filósofo Byung-Chul Han aborda em «Topologie der Gewalt» (Topologia da
Violência), tradução e edição/Relógio d’Água, obra que deveria ser, no presente,
(quase) obrigatória em muitas áreas de estudo. O autor faz uma análise em
parâmetros muito abrangentes e progressivos, desde tempos mais recuados,
passando na sociedade da era industrial, no capitalismo clássico, até aos
tempos de hoje do «burnout». Em síntese, a violência passou de níveis externos
para níveis internos, «mantém-se constante. Simplesmente se desloca para o
interior. “A decapitação” na sociedade da soberania, “ a deformação” na sociedade
disciplinar e “ a depressão” na sociedade do rendimento são estádios da transformação
topológica da violência. Sofre uma interiorização, torna-se mais psíquica e,
nessa medida, invisibiliza-se».
Este tornar-se
invisível – ou na linguagem popular o verniz e as boas aparências que não
deixam de acoitar cargas tremendas prontas a explodir, de tal modo que nem
sempre o detonador consegue escolher o local e o tempo mais propícios para o
fazer! Sobre este movimento nefasto inerente à condição humana, Byung afirma
ainda como chegou ao presente: «As execuções desenrolam-se em lugares aos quais
a comunidade pública não tem acesso. A pena de morte deixa de ser um
espectáculo. (…) O palco da violência sangrenta que caracteriza a sociedade soberana, cede lugar a uma câmara
de gás limpa e exangue, estranha ao olhar público. (…) executa-se como uma
aniquilação surda e muda.» O autor alarga a sua visão do problema, referindo-se
às forças do terrorismo que «também não agem em termos frontais, mas
dispersam-se de forma viral e atuam de maneira insível» e «os vírus digitais,
que se dedicam mais a infectar do que a atacar, quase não deixam rasto que
indicie claramente o infractor».
A actualíssima síndrome
do “burnout” é «a relação tensa, de
sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos. Do
mesmo modo, o sujeito exausto e depressivo do rendimento atormenta-se a si
mesmo. Está esgotado, farto de si mesmo, da guerra que trava consigo mesmo».
Paradoxalmente, ao contrário do que seria suposto, há ainda a força tremenda
que desemboca ou na violência sobre o outro, ou no suicídio, uma forma de
violência contra si próprio, no interior para o interior.
Na opinião de certos
autores, a violência está associada ao poder, parecendo, mais objectivado no
espaço doméstico, porque escondido dos olhos da sociedade e da lei. Essa
explosão leva-se a cabo não só pelo sujeito com mais força física, como pela
intimidação, uma outra forma de violência mais lenta e branda, mas não menos
cruel.
Todavia, Byung faz uma
distinção: «enquanto o poder constrói um “continuum” de relações hierárquicas,
a violência gera cortes e ruturas. (…) O poder caracteriza-se por juntar e encaixar,
a transgressão e o delito, em contrapartida, definem a violência. O poder
inclina-se sobre o outro até o submeter, até o encaixar. A violência inclina-se
sobre o outro até o quebrar».
Nesta linha de
pensamento, a interiorização desse mal estar terrível acaba numa tremenda fístula
psíquica e emocional que, como é óbvio, rebenta mais facilmente no âmbito
doméstico, essa mesma violência que, por exemplo, no mundo laboral já só pode
agir como intimidação seja qual for a sua espécie. Se o patrão ou chefe
hierárquico, age assim, não é por uma questão de (verdadeiro) poder, embora
podendo valer-se da sua deturpação, mas porque é interiormente violento.
Eduardo Aroso
4-12-2019
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