quinta-feira, 5 de dezembro de 2019


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU VIOLÊNCIA GENERICAMENTE UNIVERSAL?

Parece ousado o título deste texto, porque pode dar a impressão de quem o escreve diluir ou deslocar o problema, daquilo que, bem visível e próximo, nos choca diariamente. Todavia, uma reflexão mais profunda poderá buscar causas remotas no que o eminente filósofo Byung-Chul Han aborda em «Topologie der Gewalt» (Topologia da Violência), tradução e edição/Relógio d’Água, obra que deveria ser, no presente, (quase) obrigatória em muitas áreas de estudo. O autor faz uma análise em parâmetros muito abrangentes e progressivos, desde tempos mais recuados, passando na sociedade da era industrial, no capitalismo clássico, até aos tempos de hoje do «burnout». Em síntese, a violência passou de níveis externos para níveis internos, «mantém-se constante. Simplesmente se desloca para o interior. “A decapitação” na sociedade  da soberania, “ a deformação” na sociedade disciplinar e “ a depressão” na sociedade do rendimento são estádios da transformação topológica da violência. Sofre uma interiorização, torna-se mais psíquica e, nessa medida, invisibiliza-se».

Este tornar-se invisível – ou na linguagem popular o verniz e as boas aparências que não deixam de acoitar cargas tremendas prontas a explodir, de tal modo que nem sempre o detonador consegue escolher o local e o tempo mais propícios para o fazer! Sobre este movimento nefasto inerente à condição humana, Byung afirma ainda como chegou ao presente: «As execuções desenrolam-se em lugares aos quais a comunidade pública não tem acesso. A pena de morte deixa de ser um espectáculo. (…) O palco da violência sangrenta que caracteriza  a sociedade soberana, cede lugar a uma câmara de gás limpa e exangue, estranha ao olhar público. (…) executa-se como uma aniquilação surda e muda.» O autor alarga a sua visão do problema, referindo-se às forças do terrorismo que «também não agem em termos frontais, mas dispersam-se de forma viral e atuam de maneira insível» e «os vírus digitais, que se dedicam mais a infectar do que a atacar, quase não deixam rasto que indicie claramente o infractor».

A actualíssima síndrome do “burnout” é  «a relação tensa, de sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos. Do mesmo modo, o sujeito exausto e depressivo do rendimento atormenta-se a si mesmo. Está esgotado, farto de si mesmo, da guerra que trava consigo mesmo». Paradoxalmente, ao contrário do que seria suposto, há ainda a força tremenda que desemboca ou na violência sobre o outro, ou no suicídio, uma forma de violência contra si próprio, no interior para o interior.
  

Na opinião de certos autores, a violência está associada ao poder, parecendo, mais objectivado no espaço doméstico, porque escondido dos olhos da sociedade e da lei. Essa explosão leva-se a cabo não só pelo sujeito com mais força física, como pela intimidação, uma outra forma de violência mais lenta e branda, mas não menos cruel.
Todavia, Byung faz uma distinção: «enquanto o poder constrói um “continuum” de relações hierárquicas, a violência gera cortes e ruturas. (…) O poder caracteriza-se por juntar e encaixar, a transgressão e o delito, em contrapartida, definem a violência. O poder inclina-se sobre o outro até o submeter, até o encaixar. A violência inclina-se sobre o outro até o quebrar».

Nesta linha de pensamento, a interiorização desse mal estar terrível acaba numa tremenda fístula psíquica e emocional que, como é óbvio, rebenta mais facilmente no âmbito doméstico, essa mesma violência que, por exemplo, no mundo laboral já só pode agir como intimidação seja qual for a sua espécie. Se o patrão ou chefe hierárquico, age assim, não é por uma questão de (verdadeiro) poder, embora podendo valer-se da sua deturpação, mas porque é interiormente violento.

Eduardo Aroso
4-12-2019



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