segunda-feira, 6 de novembro de 2023

 

GUERRA JUNQUEIRO

NA VISÃO DE PINHARANDA GOMES, JOSÉ MARINHO E ANTÓNIO TELMO

 

Tua carne de fluidos e metais

É a carne-embrião do mundo todo,

Das águas e das rochas e do lodo,

Que foram nossas mães e nossos pais!

Por isso lanças para nós teu grito,

Por isso voam para nós teus ais!

 

Oração à Luz

 

No ano em que se comemora o centenário de Guerra Junqueiro (1850-1923) e o mainstream nacional pouco ou nada se importa com isso, só um punhado de portugueses ainda o sente como um (a par de Pascoaes), dos últimos poetas da natureza, se apenas nos quisermos situar neste seu timbre. Das suas facetas pouco conhecidas, do que hoje se chama científico, mesmo de insólito e de outro género, deixo para aqueles que bem se adentram nesses campos, tal é o caso do Prof. Joaquim Fernandes. Por isso louvemos, na admiração ao poeta, também os que se esforçam por recordar aquele que, de Freixo de Espada à Cinta, tinha sempre a sua pena em riste quando exprimia o seu republicanismo de veia portuguesa, ou a pena como puro arado, ou círio ardente, quando escrevia, por exemplo, Oração ao Pão e Oração à Luz. Odes onde a narrativa nunca deixa cair ou esmorecer a exaltação da poesia, versos em que as forças naturais parecem conjugar-se para que o poeta as desoculte e as cante. Junqueiro assim no-las mostra, em carne viva, na dureza da rocha que é sentida como anjo que um dia há-de ser, mas ainda petrificado, ou na seiva de uma planta que não é tão distante do sangue da águia que cruza os céus. O poema só não é pagão no melhor sentido do termo (dir-se-ia aquele incarnado por Pessoa), porque é repassado da nossa tradição hebraico-cristã. Poema onde qualquer inerte ou não inerte pode ser altar, na aparente rudeza do chão e o gorjeio de uma ave lançada como hossana, tudo repassado cosmologicamente pela mão do Criador.   

Quando se diz de Junqueiro, a par de Pascoaes, ser dos últimos poetas da natureza, trata-se da natureza que é invocada e responde, ao invés dos poetas que, muito embora o sejam de boa estirpe, a evocam ou simplesmente a fotografam, num acto compulsivo característico de uma época de turistas sempre de máquina na mão, pelo que, nessa ânsia, não se demoram o tempo mínimo para sequer nela se concentrarem e senti-la.

No texto introdutório de Oração ao Pão, Oração à Luz (magnífica edição gráfica da Lello Editores, 1997), Pinharanda Gomes (1939-2019), numa apreciação global do poeta, fala-nos do seu proverbial anticlericalismo (ou talvez não) perante «intelectuais católicos que se limitaram a assumir o pré-conceito face a Junqueiro e se lhe encomiam a obra poética, lhe limitaram o mérito por causa das arremetidas do seu espiritualismo combativo». Considerando a sociedade daquele tempo, parece ter sido necessário tanta arremetida, pois acrescenta ainda Pinharanda: «Viveram-se dias difíceis, em que os cristãos, e de modo especial o clero, se orientaram não tanto para os desafios sacrificiais da Escritura, mas para as promessas e estratégias do Ministério do Reino e do Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos». Na verdade, o gume que há na pena junqueirina é tão-só o ímpeto «para acordar a santidade adormecida dos crentes e dos seus pastores». No que diz respeito sobretudo em Oração ao Pão, Oração à Luz, «Junqueiro é um criador de oração e, diremos, um promotor da poesia para a oração, para uma poesia assumida de modo querigmático e de alcance soteriológico». E se mais nos adiantássemos logo veríamos que, por exemplo, em Os Simples, para além da moldura rústica que os preenche, repassa-os dir-se-ia um cristianismo franciscano, de vidas singelas, naquele jeito comovedor com que Eça de Queiróz finaliza o seu genial conto O Suave Milagre, quando a criança inocente, doente, «erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam e embrulhada em negros trapos» pede à mãe, desgrenhada, para ver Jesus e este, «abrindo devagar a porta e sorrindo» diz: «aqui estou».

José Marinho (1904-1975) também não ficou indiferente a Junqueiro. Num dos seus escritos sobre o poeta, diz-nos que: «o íntimo pensamento de Junqueiro exprime-se num contraste que, de diversos modos, caracteriza outros homens representativos do seu, do nosso e de outro tempo». Esta simples afirmação faz-nos ver de imediato o contraste que há, por exemplo, em A Velhice do Padre Eterno e Oração ao Pão, Oração à Luz. Para Marinho, na compreensão dos poemas de Junqueiro há que atentar «onde existe a presença intencional do poeta e naqueles onde essa presença intencional não existe». Desocultando a sua poesia, continua: «é muito difícil escrever hoje sobre Guerra Junqueiro como sobre os homens verdadeiramente grandes do nosso país. O grande torna-se pequeno na falsa perspectiva do juízo dos medíocres. E onde a mediocridade se faz juízo e crítica não há perdão para a grandeza. Tem esta de ser medida por baixo estalão. (…) Nós devemos agradecer a Junqueiro ter levado ao limite a sátira contra o catolicismo e contra as formas degradadas da vida religiosa» e até como ele «desmentiu os seus veementes sarcasmos da juventude. Devemos agradecer-lho porque os livros sagrados frisam bastante explicitamente a necessidade de o catolicismo entrar de vez em quando em purgação. (…) Sem dúvida, a mais profunda tradição de Junqueiro vai passar para Teixeira de Pascoaes». José Marinho lançou esta sentença de vera tradição, a que corre nas veias da filosofia portuguesa, neste caso tradição poética. Afirmação de tal ordem certeira que figuras destacadas do pensamento português da segunda metade do século XX se ocuparam profundamente da linha poética aurífera do poeta do Marão.

 António Telmo (1927-2010), voltou mais a sua atenção para Régio, Pascoaes e Pessoa, não esquecendo um Eugénio de Castro ou até um Carlos Queirós. Mesmo assim, na obra Viagem a Granada, o filósofo de Razão Poética como que irmana Sampaio Bruno e Junqueiro como pedras-angulares do século XX. Ouçamo-lo: «Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois». Acrescenta que neles (em Bruno e Junqueiro), «está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria».

Em História Secreta de Portugal (a ler e reler), capítulo VIII, António Telmo, tratando da ocultação da natureza como «um dos fenómenos mais significativos do fim de um ciclo» fala-nos do moderno «sentimento fotográfico da paisagem» incarnado por Alberto Caeiro que «parece ter pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a personifica e macula de alma e sentimento». Diz Telmo que em Caeiro «a revelação é imediata sem passagem pelo negativo».  E adverte para «o fascínio da imagem que imobiliza o espírito». A invocação da natureza, com todos os medos e outros obstáculos em Pascoaes «chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo põe um certo espaço entre ela e quem a invoca, como se as próprias palavras invocatórias, projectando-se, criassem também o lugar da aparição. O poeta está dentro do círculo». (…) Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se. (…) Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela».  

Se Telmo se debruçou essencialmente na obra de Pascoaes, no legado de Junqueiro apontado por Marinho, o filósofo de Estremoz parece ter lançado luz sobre dois poetas da natureza de linhas diferentes, Pascoaes e Caeiro, ao mesmo tempo que nos mostra por uma subtil hermenêutica que a tradição que Pascoaes ainda incarna, parece ter ficado em suspenso. Suspensão, intervalo ou interregno como o Portugal por cumprir? Poderíamos apontar outros dois ou três grandes poetas do século XX, próximos também da natureza, que a entrelaçaram e exorbitaram, com imagens de elevada poesia e ritmos pessoais, mas sem aquela ventura e força de alma ungida por um fatum escatológico, que tomam conta do poeta para o que mais importa do transcendente.

Eduardo Aroso

Outubro de 2023

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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