GUERRA JUNQUEIRO
NA VISÃO DE PINHARANDA GOMES, JOSÉ MARINHO E ANTÓNIO TELMO
Tua carne
de fluidos e metais
É a
carne-embrião do mundo todo,
Das águas e
das rochas e do lodo,
Que foram
nossas mães e nossos pais!
Por isso
lanças para nós teu grito,
Por isso
voam para nós teus ais!
Oração à Luz
No ano em que se comemora o centenário de Guerra Junqueiro (1850-1923)
e o mainstream nacional pouco ou nada se importa com isso, só um punhado
de portugueses ainda o sente como um (a par de Pascoaes), dos últimos poetas da
natureza, se apenas nos quisermos situar neste seu timbre. Das suas facetas
pouco conhecidas, do que hoje se chama científico, mesmo de insólito e de outro
género, deixo para aqueles que bem se adentram nesses campos, tal é o caso do
Prof. Joaquim Fernandes. Por isso louvemos, na admiração ao poeta, também os
que se esforçam por recordar aquele que, de Freixo de Espada à Cinta, tinha
sempre a sua pena em riste quando exprimia o seu republicanismo de veia
portuguesa, ou a pena como puro arado, ou círio ardente, quando escrevia, por
exemplo, Oração ao Pão e Oração à Luz. Odes onde a narrativa
nunca deixa cair ou esmorecer a exaltação da poesia, versos em que as forças
naturais parecem conjugar-se para que o poeta as desoculte e as cante.
Junqueiro assim no-las mostra, em carne viva, na dureza da rocha que é sentida
como anjo que um dia há-de ser, mas ainda petrificado, ou na seiva de uma
planta que não é tão distante do sangue da águia que cruza os céus. O poema só
não é pagão no melhor sentido do termo (dir-se-ia aquele incarnado por Pessoa),
porque é repassado da nossa tradição hebraico-cristã. Poema onde qualquer
inerte ou não inerte pode ser altar, na aparente rudeza do chão e o gorjeio de
uma ave lançada como hossana, tudo repassado cosmologicamente pela mão do
Criador.
Quando
se diz de Junqueiro, a par de Pascoaes, ser dos últimos poetas da natureza,
trata-se da natureza que é invocada e responde, ao invés dos poetas que,
muito embora o sejam de boa estirpe, a evocam ou simplesmente a
fotografam, num acto compulsivo característico de uma época de turistas sempre
de máquina na mão, pelo que, nessa ânsia, não se demoram o tempo mínimo para
sequer nela se concentrarem e senti-la.
No
texto introdutório de Oração ao Pão, Oração à Luz (magnífica edição gráfica
da Lello Editores, 1997), Pinharanda Gomes (1939-2019), numa apreciação global
do poeta, fala-nos do seu proverbial anticlericalismo (ou talvez não) perante «intelectuais
católicos que se limitaram a assumir o pré-conceito face a Junqueiro e se lhe encomiam
a obra poética, lhe limitaram o mérito por causa das arremetidas do seu
espiritualismo combativo». Considerando a sociedade daquele tempo, parece
ter sido necessário tanta arremetida, pois acrescenta ainda Pinharanda: «Viveram-se
dias difíceis, em que os cristãos, e de modo especial o clero, se orientaram
não tanto para os desafios sacrificiais da Escritura, mas para as promessas e
estratégias do Ministério do Reino e do Ministério da Justiça e dos Negócios
Eclesiásticos». Na verdade, o gume que há na pena junqueirina é tão-só o
ímpeto «para acordar a santidade adormecida dos crentes e dos seus
pastores». No que diz respeito sobretudo em Oração ao Pão, Oração à Luz,
«Junqueiro é um criador de oração e, diremos, um promotor da poesia para a
oração, para uma poesia assumida de modo querigmático e de alcance
soteriológico». E se mais nos adiantássemos logo veríamos que, por exemplo,
em Os Simples, para além da moldura rústica que os preenche, repassa-os
dir-se-ia um cristianismo franciscano, de vidas singelas, naquele jeito
comovedor com que Eça de Queiróz finaliza o seu genial conto O Suave Milagre,
quando a criança inocente, doente, «erguendo as suas pobres mãozinhas que
tremiam e embrulhada em negros trapos» pede à mãe, desgrenhada, para ver
Jesus e este, «abrindo devagar a porta e sorrindo» diz: «aqui estou».
José Marinho (1904-1975) também não ficou indiferente a
Junqueiro. Num dos seus escritos sobre o poeta, diz-nos que: «o íntimo
pensamento de Junqueiro exprime-se num contraste que, de diversos modos,
caracteriza outros homens representativos do seu, do nosso e de outro tempo».
Esta simples afirmação faz-nos ver de imediato o contraste que há, por exemplo,
em A Velhice do Padre Eterno e Oração ao Pão, Oração à Luz. Para
Marinho, na compreensão dos poemas de Junqueiro há que atentar «onde existe
a presença intencional do poeta e naqueles onde essa presença intencional não
existe». Desocultando a sua poesia, continua: «é muito difícil escrever
hoje sobre Guerra Junqueiro como sobre os homens verdadeiramente grandes do
nosso país. O grande torna-se pequeno na falsa perspectiva do juízo dos
medíocres. E onde a mediocridade se faz juízo e crítica não há perdão para a
grandeza. Tem esta de ser medida por baixo estalão. (…) Nós devemos agradecer a
Junqueiro ter levado ao limite a sátira contra o catolicismo e contra as formas
degradadas da vida religiosa» e até como ele «desmentiu os seus
veementes sarcasmos da juventude. Devemos agradecer-lho porque os livros
sagrados frisam bastante explicitamente a necessidade de o catolicismo entrar
de vez em quando em purgação. (…) Sem dúvida, a mais profunda tradição de
Junqueiro vai passar para Teixeira de Pascoaes». José Marinho lançou esta
sentença de vera tradição, a que corre nas veias da filosofia portuguesa, neste
caso tradição poética. Afirmação de tal ordem certeira que figuras destacadas
do pensamento português da segunda metade do século XX se ocuparam profundamente
da linha poética aurífera do poeta do Marão.
António Telmo (1927-2010), voltou mais a sua
atenção para Régio, Pascoaes e Pessoa, não esquecendo um Eugénio de Castro ou até
um Carlos Queirós. Mesmo assim, na obra Viagem a Granada, o filósofo de Razão
Poética como que irmana Sampaio Bruno e Junqueiro como pedras-angulares do
século XX. Ouçamo-lo: «Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de
facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama
central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a
poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando
Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o
fulgor nascido do encontro daqueles dois». Acrescenta que neles (em Bruno e
Junqueiro), «está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do
criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que
se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião
da Pátria».
Em
História Secreta de Portugal (a ler e reler), capítulo VIII, António
Telmo, tratando da ocultação da natureza como «um dos fenómenos mais
significativos do fim de um ciclo» fala-nos do moderno «sentimento
fotográfico da paisagem» incarnado por Alberto Caeiro que «parece ter
pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a
personifica e macula de alma e sentimento». Diz Telmo que em Caeiro «a
revelação é imediata sem passagem pelo negativo». E adverte para «o fascínio da imagem que
imobiliza o espírito». A invocação da natureza, com todos os medos e outros
obstáculos em Pascoaes «chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo
põe um certo espaço entre ela e quem a invoca, como se as próprias palavras
invocatórias, projectando-se, criassem também o lugar da aparição. O poeta está
dentro do círculo». (…) Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo,
quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se. (…) Outros,
tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram
a mesma estrela».
Se
Telmo se debruçou essencialmente na obra de Pascoaes, no legado de Junqueiro
apontado por Marinho, o filósofo de Estremoz parece ter lançado luz sobre dois
poetas da natureza de linhas diferentes, Pascoaes e Caeiro, ao mesmo tempo que
nos mostra por uma subtil hermenêutica que a tradição que Pascoaes ainda
incarna, parece ter ficado em suspenso. Suspensão, intervalo ou interregno como
o Portugal por cumprir? Poderíamos apontar outros dois ou três grandes poetas
do século XX, próximos também da natureza, que a entrelaçaram e exorbitaram,
com imagens de elevada poesia e ritmos pessoais, mas sem aquela ventura e força
de alma ungida por um fatum escatológico, que tomam conta do poeta para
o que mais importa do transcendente.
Eduardo Aroso
Outubro de 2023
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