sábado, 13 de agosto de 2016

EVOCANDO ALJUBARROTA, O CONDESTÁVEL D. NUNO ÁLVARES PEREIRA E AGOSTINHO DA SILVA

Num momento histórico em que a laicidade se afirmou como um ponto de não-retorno e os meandros da política se tornaram no lado pior do poço escuro de Hades, o capítulo intitulado ´Política e Santidade´ de «As Aproximações» de Agostinho da Silva, aproximam-nos (permita-se o agradável pleonasmo) de um tema que está longe de se esgotar em qualquer constituição da república, seja em que congresso for, ou mesa-redonda televisiva. O que Agostinho no fundo toca é na intricada problemática transcivilizacional do poder temporal versus (ou não) poder religioso/espiritual, e que, segundo creio, desde remotas eras parece estar incarnado na misteriosa figura de Melquisedeque,  Rei da Justiça, Rei de Salém e Sacerdote do Deus Altíssimo (Génesis 14:18-20; Salmo 110:4; Hebreus 5:6-11; 6:20-7:28). Diz-se que não tem princípio nem fim, e do qual faz parte a linhagem de Cristo.

A ideia de Rei e Sacerdote (como foram alguns faraós), salvo as devidas diferenças de complexidade das sociedades actuais, aparece nesta entrada tumultuosa do séc XXI, no referido texto de Agostinho – embora escrito nos anos sessenta do último século - quando o político, vendo-se ao espelho, pode ver lá no fundo o rosto do santo ou vice-versa. Seres «que se recusaram a separar um plano do mundo do outro plano». Uma utopia possível do governante temporal, tal a mas límpida oração do místico a que pode aliar outra força, sabendo que agita sempre algo nos céus. Agostinho refere algumas figuras, como Gandhi e Lincoln; «o serem santos os ajudou a serem políticos lhes deu mil ocasiões de se mostrarem santos».
Agostinho, se bem lermos, com este texto não afronta a questão do que se veio afirmando depois da Revolução Francesa, da separação de poderes, seja do Estado perante uma ou mais confissões religiosas “oficiais”, ou não, de maiores dimensões ou minoritárias. A questão é a superação pessoal daquele que comanda, e que, para além da força de vontade e saber, pode receber iluminação interior, ou vice-versa. Em certas épocas alguns monarcas nossos mostram isso mesmo ao longo da História, onde, por exemplo, em dado momento se cruzavam o político e o santo nas relações com a Igreja Romana.

Quando o filósofo escreve que «são as duas frentes em que se combate, basilarmente, contra as mesmas hostilidades ou as mesmas indisposições de mundo físico», lança um duplo repto, seja ao santo, seja ao político. Porque «quando aparecem as ideias de deixar a política para os políticos, e cuidarem os santos da sua salvação, aí temos de novo a Serpente pronta a tentar perder». Eis um desafio tão importante como o que se coloca aos jovens de hoje (e este já com mais difusão!): o de se interessarem pela política e não se alhearem dela por outros caminhos.

Nuno Álvares Pereira, essa elevada figura que Pessoa disse ter uma auréola que o cerca, guerreiro e monge, embora não o citando, constitui no texto de Agostinho, e nesta perspectiva, o melhor arquétipo da nossa História, e que não deixa de ser exemplo dessa enigmática e longínqua linhagem de Melquisedeque. O guerreiro e depois santo condestável mostrou, há séculos atrás algo mais heróico, muito antes de ficarmos embasbacados com a frase «Yes we can». De modo mais visível e momentâneo, em Atoleiros e em Aljubarrota ele viveu a verdade do verso pessoano: «o homem e a hora são um só».

Eduardo Aroso

(Cabo Mondego,  14 de Agosto de 2016) 

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