sexta-feira, 29 de maio de 2020



O CORONAVÍRUS – UM GRÃO DE AREIA NO DESERTO DO AFASTAMENTO E CONTROLO DO SER HUMANO

«No futuro haverá, possivelmente, uma profissão a que se chamará “ouvinte”. Mediante pagamento, o ouvinte escutará um outro, atendendo ao que este diga. Recorreremos ao ouvinte porque, excepto ele, quase mais ninguém haverá que nos escute» (Byung-Chul Han)

À parte o (doloroso) abalo directo no corpo, o vírus constitui um dos meios do crescente afastamento entre pessoas, aliado a uma tecnologia susceptível de controlar o cidadão. A globalização dos muito ricos, sem rosto, cria governos que ficam reféns da venda de riqueza nacional ou acções contratuais que logo pressionam a criação de legislação a favor desses países. O telemóvel, verdadeira torre de Babel onde o controlador da torre não é o dono do telemóvel, apresenta-se o objecto privilegiado para esse rastreio minuto a minuto. Brevemente, a quem não possuir o aparelho, será dado um, como se fez com um número que já nos foi atribuído. O telemóvel pode ser a doce antecâmara do chip futuro sem o qual talvez o cidadão não tenha acesso a um sem número de serviços. O eminente pensador da actualidade Byung-Chul Han escreveu recentemente: «Na China existem 200 milhões de câmaras de vigilância, muitas delas com uma técnica muito eficiente de reconhecimento facial. Captam até mesmo as pintas no rosto. Não é possível escapar da câmara de vigilância (…)». Sobre o afastamento social diz o filósofo germano-coreano «A estratégia da dominação consiste hoje em privatizar o sofrimento e o medo, ocultando desse modo a sua sociabilidade. (…) A Internet, hoje, não é mais do que uma caixa de ressonância do eu isolado. (…) Sem a presença do “outro”, a comunicação degenera num intercâmbio acelerado de informação. Não estabelece qualquer “relação”, mas antes a”conexão” somente».

Evitar ajuntamentos - o único modo de dar alguma coragem ainda que momentânea, mobilizando pessoas para o que der e vier – parece ser o objectivo a atingir. A Europa ( e aqui não estamos a falar dos infelizes migrantes que arribam ao mediterrâneo para entrar no velho continente), apesar de tudo ainda faz finca-pé nos valores da Revolução Francesa perante o problema que lhe é colocado. E o problema ultrapassa o que existiu durante séculos: apenas a tão desejada margem de lucro. O que parece acontecer agora, para manter esses privilégios, é garantir algum domínio legislativo e de cláusulas contratuais (algo que passa de governo em governo), tendo na retaguarda a ameaça militar. A globalização é o último andar da torre de Babel, de onde se sacodem os tapetes e se cospe para os vizinhos de baixo.

Entretanto, ao jeito de um trabalho na arena, cansa-se o cidadão de mil maneiras, porque o “burnout” não existe apenas no trabalho, mas na própria sociedade. E assim continuamos a bater palmas à cena feita pela direita e pela esquerda no tabuleiro que apenas se roda para outro jogo. Actores que confundem o seu amor-próprio com um moribundo paradigma, naufrágio no qual alguns têm bóias e outros não.

Eduardo Aroso
Maio de 2020

quinta-feira, 28 de maio de 2020


A FALTA DE SENTIDO DO DEVIR HISTÓRICO
OU A PANDEMIA DO EFÉMERO

Se há algo que caracteriza as gerações novas, ou talvez as da meia-idade, é o rápido esquecimento do mundo de há 30 ou 40 anos, trocado por aquilo que é o fascínio do novo ou da novidade. Isso aplica-se à vida de um modo geral. Deve-se, por um lado, à facilidade da busca veloz de crescente informação por um processo que lhe está obviamente associado: a tecnologia digital. O problema principal é quando se acumulam conhecimentos não estruturados ou não digeridos fora de toda a ausência do sentido ou devir histórico. “Parece que o mundo começou há meia dúzia de anos!” é a exclamação já frequente de muito boa gente que começa a perceber que, no teatro do mundo, não de deve confundir a forma e a essência, ou os cenários que vão mudando para representar o mesmo drama da humanidade.  
Tudo isto é ajudado pelo chamado «ensino obrigatório» e mais do que isso de uma espécie de “moral obrigatória” que o sistema impõe, quer pela pressão e o controle dos média, reflectidos na oscilante mudança dos currículos escolares que pretendem uma formação integral com “a fruta da época”, sendo que há necessárias excepções como é obviamente a da ênfase na actualização científica. No campo da artes se perguntarmos a vinte alunos do curso de História de Arte quem foi René Huyghe talvez um responda. Os compêndios, que sempre elegiam Thomas Edison, ainda hesitam em falar de Tesla, não fosse o seu nome estampado no mais sofisticado automóvel. Dos «The Beatles» ainda se sabe, mas já ninguém escuta «The Animals» ou «The Mamas and Papas». E quem aprecia Moustaky ou Piaf ou (excepto para fins académicos) quem lê Aquilino, Torga ou Agustina?
Ainda que já houvesse escrita, os filósofos mais antigos e outros da mesma estirpe não estavam interessados em escrever como qualquer intelectual hoje tem necessidade de o fazer, ou o simples cidadão que se sente realizado se publicar um livro. O grande objectivo desses mestres, pela sua presença ante os discípulos, era o da sua transformação interior, a verdadeira alquimia que não olhava para o «vil metal» com lhe chamaria Camões, nem para o armazenamento de páginas e páginas no cérebro. Há mais de dois milénios, um mestre gravou sobre a entrada do Templo de Delfos a celebérrima frase: «Homem, conhece-te a ti próprio». Não tinha essa época, de modo nenhum, o avanço no conhecimento médico que hoje existe, mas tinha estas “vacinas” contra a já muito longa pandemia do efémero.

Eduardo Aroso
27-5-2020

terça-feira, 26 de maio de 2020



UNIDOS PELO PRESENTE E FUTURO DA CULTURA EM PORTUGAL
( 2ª PARTE)
CULTURA E ENTRETENIMENTO
Assim como o liberalismo não é o neoliberalismo e a beira da estrada não é a estrada da Beira, também Cultura não é o mesmo que entretenimento e lazer, ainda que estes dois últimos, quiçá, possam coexistir enquanto elementos secundários. Um ministério da Cultura que ostente este nome deve ter uma nítida distinção entre uma coisa e outra, e se não quer acrescentar a palavra «entretenimento» ao seu dístico, deve, no mínimo, ter dois balcões, bem como um critério de distribuição de verbas, tornado público. Qualquer um sabe que é mais fácil gerir uma actividade recreativa do que ter um cargo superior relacionado com a Cultura que, em abono da verdade, tem também um lugar diferente do que tem o artesanato. Todas estas actividades têm a sua função nas sociedades cada vez mais heterogéneas, chegando mesmo a ser um bom factor de saúde mental e da realização que cada um pode ter.
 Mas vamos ao tema: a ideia do que é a verdadeira Cultura nunca foi pacífica, tanto mais que também nunca foi fácil ajuizar do que em cada presente (época) fica como marca de Cultura. Mas não temos dúvida, pelo que diz a História, mesmo a mais recente, do que já é Cultura. Um ministério que não zela pelo património cultural mais ou menos recente e por aqueles que o mantêm vivo, não é ministério de cultura ou então é de outras coisas (não falo agora das listas de compadres).
 Por muito que a alguns custe admitir, no mundo moderno a degradação do que é cultura é a degradação do espírito. Há, contudo quem escape dessa pandemia. Na época que Nietzsche proclamou a “morte de Deus” estava Wagner vacinado contra isso; ou quando Duchamp criou o «A fonte» (urinol) Kandinsky navegava noutras águas. A ideia de que o criador de uma obra deve ceder completamente à subjectiva interpretação de quem a aprecia, foi crescendo de tal maneira que o artista (nas sempre louváveis excepções), para sobreviver, viu-se na obrigação de transmitir a sua mensagem na forma do utilitarismo consumista. Assim chegámos à “arte sem artista” – uma mera forma de expressão (quanto mais bizarra melhor) para a interpretação (!) de quem a usufrui. Mas também outros factores deste declínio no panorama mundial (até na velha Europa), como é o caso da classe média que se foi extinguindo. Dela poderiam vir aqueles que constituem as elites espirituais para fazer face a uma nova vaga de “elites intelectuais” (muito chegadinhas aos tecnocratas), destinadas a servir o novo-riquismo. São os angariados das “Cortes palacianas actuais”. Mas só as elites do espírito fermentam uma sociedade contra a barbárie, sustentando as democracias salutares.
 Posto que, no caso português, a presença dos municípios está em todo o país, e para ainda haver alguma salvação do que é cultura, e como há, de um modo geral, escolas e academias em todos os concelhos, sugiro que se ouça a sério quem sabe de cultura. O povo também necessita de lazer e tem-no tido sempre com aquela música onde as pessoas aguardam ansiosamente a palavra brejeira que rima com outra ainda mais brejeira. E também há – quando o rei faz anos – honrosas excepções. Boas orquestras já têm tocado nas antigas Casas do Povo e nos teatros municipais. Seja como for, haja então dois balcões nos municípios. É claro que um deles vai ter mais gente e vai ganhar mais votos. Até ao século XXII?

Eduardo Aroso
25-5-2020

domingo, 24 de maio de 2020


AFORISMOS (55)

No rosto de «olhar esfíngico e fatal» representam as duas faces de Portugal o Corvo e a Águia. Se olhamos para o primeiro, vemos o tempo presente, decaído, na inevitável putrefacção. Todo o devir tem o seu “nigredo” prévio, ou a aurora que deve emergir do negro nocturno cor da ave. Na outra face, tocamos a memória ou fio do tempo ao jeito de Ouroborus, onde se cruzam o mistério do início e do fim de ciclo, porque sabemos do  alento ígneo da espiral.
Séculos e séculos volvidos, eis que o Corvo da barca de S. Vicente voaria, transmutado em Águia, esse animal que fita o sol, sem medo, como um profeta olha o futuro.

Eduardo Aroso ©
24-5-2020




quinta-feira, 14 de maio de 2020


Aforismos (54)
TAXA DE IMORTALIDADE

Há a preocupação (legítima) com as taxas de mortalidade. Quanto à outra, que tem diminuído drasticamente, não se trata de viver para sempre no corpo, escapando à lei da morte. A imortalidade é a de deixar rasto por boas razões. Para isso veste-se sempre da ética, do esforço, do auto-sacrifício e também de um pouco de génio. Há até os imortais que - trocados por vistosos mortais – nem sequer figuram no nome das praças. Mas a sua imortalidade é registada pela mão segura e verdadeira da Natureza.

Eduardo Aroso
13-5-2020


segunda-feira, 4 de maio de 2020



VIA OPERATIVA
(ao aniversariante anónimo)

Marca a pedra.
Antes, porém
o teu acto.
O movimento toca-a
e segue mais além
e mais alto.
A essência da pedra
fica na presença
para retomar o fogo
quando tudo for pó
e ausência.

Eduardo Aroso ©
Maio 2020