terça-feira, 9 de junho de 2020


DEIXEM LUIS DE CAMÕES EM PAZ,
OU AMEM-NO DE VEZ!

«Que eu bem sei que o canto
 Há-de achar menos crédito que espanto»
                      (Canção VII, Luis de Camões)           

O poeta que vive no coração de muitos portugueses – uns guardam-no em semiconsciência; menos são os que o escutam dentro de si - parece que foi convocado a regressar ao túmulo nos Jerónimos, para ter que ouvir o já velho camonismo de Estado. Essa obrigação da lembrança anual de quem no resto do ano deixa vaguear o idioma português num caos de ortografias, não sei se sentirá uma dor semelhante à do cidadão que tem que pagar cada vez mais impostos. Mas lá terá que ser, não há outro remédio. Neste 10 de Junho, espera-se que a cerimónia se salve pelo acto de um poeta evocar outro poeta e a certeza do autor de «Os Lusíadas» não se expor a selfies.
A imagem de Luis de Camões mudou (isto é, repartiu-se) de algum modo nestes últimos 40 anos. Houve quem felizmente se distanciasse dos que mantinham (mantêm?) a ideia de uma epopeia que afinal de contas não foi bem assim, havendo até quem tenha escrito que «Os Lusíadas» são uma anti-epopeia (título de um livro) de um antirrevolucionário! Todavia, muitos dos que se distanciaram dessa falange não deixam de ver ainda na magna obra uns pecadilhos por ela imitar o estilo dos velhos clássicos, arremetidas essas como se fossem uma espécie de “reparo” ao poeta, por ele trazer à sua obra todos esses heróis gregos e outros temas da Antiguidade. Tal finca-pé parece não deixar ver o essencial: o zénite da epopeia atingido na Ilha dos Amores, onde se vislumbra, para quem possa ver (imaginar) o horizonte mais largo de Portugal e da humanidade.

Assim, ao contrário do que possa parecer, esta imagem do vate não é, qualitativamente, muito diferente daquela que nos apresentava a política cultural do Estado Novo (e ainda não extinta de vez neste particular), ou seja, o poeta servia às mil maravilhas para umas coisas, mas para outras nem pensar. O Canto IX, recheado de cenas dionisíacas de “erotismo e paganismo” era silenciado no meio académico, chegando mesmo a ser omitido nalgumas edições mais populares. Depois de 74, foi abolida a censura, mas o espírito de interpretação literal, escolástico, raramente tem dado lugar a uma hermenêutica simbólica e esotérica do poeta que escreveu: «Transforma-se o amador na cousa amada». Aqueles que, de algum modo o têm feito, não conhecem os corredores académicos; se conhecem, não servem para citação nos actos solenes.
Fiquemos com o retrato de Camões que parece não ter mudado muito para os portugueses, e que podemos ler em «Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões» de António Telmo (1927-2010), uma hermenêutica de desocultação de «Os Lusíadas», publicada pela primeira vez em 1982.
«A imagem que, ao longo dos séculos, o camonismo de Estado formou e difundiu mostra o autor de «Os Lusíadas» como um plagiador de Petrarca na lírica, de Virgílio na épica, de Platão na filosofia; um homem de inegável talento, mas sem iniciativa criadora, servo em religião do catolicismo, mentiroso pelo uso da mitologia romana, pior cronista do que João de Barros; um sensual hesitante entre a atracção do sexo e a sua sublimação. Quatrocentos anos se aborreceram os portugueses com esta imagem à qual atribuíram um sentido não muito diferente do retrato do Presidente da República em exercício, obrigatoriamente pendurado nas repartições públicas. Por ironia ou sarcasmo pintaram o plagiador – homem de algum talento, servil e beato, mentiroso e sensual – com uma coroa de louros sobre a cabeça severa de guerreiro. Em cima escreveram: Luís de Camões, Príncipe dos Poetas; e puseram por baixo a palavra «Pátria».

Eduardo Aroso ©
Vésperas do 10 de Junho de 2020


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