DEIXEM LUIS DE CAMÕES EM PAZ,
OU AMEM-NO DE VEZ!
«Que eu bem sei que o canto
Há-de achar menos crédito
que espanto»
(Canção
VII, Luis de Camões)
O poeta que vive no coração de
muitos portugueses – uns guardam-no em semiconsciência; menos são os que o
escutam dentro de si - parece que foi convocado a regressar ao túmulo nos
Jerónimos, para ter que ouvir o já velho camonismo de Estado. Essa obrigação da
lembrança anual de quem no resto do ano deixa vaguear o idioma português num
caos de ortografias, não sei se sentirá uma dor semelhante à do cidadão que tem
que pagar cada vez mais impostos. Mas lá terá que ser, não há outro remédio. Neste
10 de Junho, espera-se que a cerimónia se salve pelo acto de um poeta evocar
outro poeta e a certeza do autor de «Os Lusíadas» não se expor a selfies.
A imagem de Luis de Camões mudou
(isto é, repartiu-se) de algum modo nestes últimos 40 anos. Houve quem
felizmente se distanciasse dos que mantinham (mantêm?) a ideia de uma epopeia
que afinal de contas não foi bem assim, havendo até quem tenha escrito que «Os
Lusíadas» são uma anti-epopeia (título de um livro) de um antirrevolucionário!
Todavia, muitos dos que se distanciaram dessa falange não deixam de ver ainda na
magna obra uns pecadilhos por ela imitar o estilo dos velhos clássicos, arremetidas
essas como se fossem uma espécie de “reparo” ao poeta, por ele trazer à sua
obra todos esses heróis gregos e outros temas da Antiguidade. Tal finca-pé parece
não deixar ver o essencial: o zénite da epopeia atingido na Ilha dos Amores,
onde se vislumbra, para quem possa ver (imaginar) o horizonte mais largo de
Portugal e da humanidade.
Assim, ao contrário do que possa
parecer, esta imagem do vate não é, qualitativamente, muito diferente daquela
que nos apresentava a política cultural do Estado Novo (e ainda não extinta de
vez neste particular), ou seja, o poeta servia às mil maravilhas para umas
coisas, mas para outras nem pensar. O Canto IX, recheado de cenas dionisíacas de
“erotismo e paganismo” era silenciado no meio académico, chegando mesmo a ser
omitido nalgumas edições mais populares. Depois de 74, foi abolida a censura,
mas o espírito de interpretação literal, escolástico, raramente tem dado lugar
a uma hermenêutica simbólica e esotérica do poeta que escreveu: «Transforma-se
o amador na cousa amada». Aqueles que, de algum modo o têm feito, não conhecem
os corredores académicos; se conhecem, não servem para citação nos actos
solenes.
Fiquemos com o retrato de Camões
que parece não ter mudado muito para os portugueses, e que podemos ler em
«Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões» de António Telmo (1927-2010), uma
hermenêutica de desocultação de «Os Lusíadas», publicada pela primeira vez em
1982.
«A imagem que, ao longo dos
séculos, o camonismo de Estado formou e difundiu mostra o autor de «Os Lusíadas»
como um plagiador de Petrarca na lírica, de Virgílio na épica, de Platão na
filosofia; um homem de inegável talento, mas sem iniciativa criadora, servo em
religião do catolicismo, mentiroso pelo uso da mitologia romana, pior cronista
do que João de Barros; um sensual hesitante entre a atracção do sexo e a sua
sublimação. Quatrocentos anos se aborreceram os portugueses com esta imagem à
qual atribuíram um sentido não muito diferente do retrato do Presidente da
República em exercício, obrigatoriamente pendurado nas repartições públicas.
Por ironia ou sarcasmo pintaram o plagiador – homem de algum talento, servil e
beato, mentiroso e sensual – com uma coroa de louros sobre a cabeça severa de
guerreiro. Em cima escreveram: Luís de Camões, Príncipe dos Poetas; e puseram
por baixo a palavra «Pátria».
Eduardo Aroso ©
Vésperas do 10 de Junho de 2020
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