segunda-feira, 30 de setembro de 2013


O SER E O PODER - RESCALDO DE UMAS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS

(OU A ENTREGA DE TESTEMUNHO PERANTE AS CAMADAS DO TEMPO)  ©

 
… Mas só um sonho maior, de um arco de trezentos e sessenta graus, pode ser o móbil de convergência do povo português; apenas com a percepção, seguida de esforço, de um projecto verdadeiramente assente na nossa natureza potencial, seja o modo próprio de fazer e divulgar cultura, seja a eficácia de um aproveitamento global emergente daquilo que geneticamente somos e flui - quando não é obstruído - na força de trabalho. Diversidades as nossas, de sempre (uma forma mais estável de riqueza), começando pela geografia deste pequeno rectângulo («nesga de terra debruada de mar», como lhe chamou Torga) que em poucos quilómetros vai da lezíria à planície ou da plasticidade do litoral ao granítico interior; a diversidade feita do convívio multirracial e intercontinental, lusa identidade com a génese no tronco cristão, hebraico e islâmico (berbere). Pelo que, a diversidade deve, como inteligência, ser gerida como tal, na visão superior que deve estar presente naqueles que lideram.

Assim, de que modo este «nada que é tudo», como acentuou Pessoa, se poderá fazer um Portugal mais presente numa Europa tão ausente? Muito a propósito destas eleições, é acutilante o que escreveu Adriano Moreira no DN já em 17 de Setembro: «Grande parte das alienações que se vulgarizam tocam nas raízes das comunidades e, portanto, na sua identidade. Nas crises brutais por que Portugal passou nestes já longos séculos, foi a segurança da identidade da sociedade civil que permitiu reconstruir um novo futuro».

O sonho nunca foi inatingível, mas é certo que tem sido método seguro construir do perto para o longe, caminhar do conhecido para o desconhecido, e, por isso mesmo, a vera cultura política em Portugal deve começar por estudar a nossa longa e rica tradição municipalista (termo que se deve sobrepor a autarquia). E é da responsabilidade dos municípios, juntas de freguesia, escolas e outras instituições, essa tarefa tão bem colocada há já algumas décadas pelo filósofo Afonso Botelho na sua obra ímpar «Origem e Actualidade do Civismo».

 O que temos vindo a assistir nas últimas décadas, nas relações dos governantes com o povo, são posturas visceralmente antiportuguesas e contra a natureza (o mesmo é dizer contra todos os seres) de indivíduos de uma cultura híbrida mal enxertada (quando mesmo sem enxerto nenhum), de projectos que trazem carimbos de Bruxelas; de gente que gosta de tapar relva com alcatrão; posturas e modos de agir (salvo as excepções que felizmente não são tão poucas!) que têm laivos faraónicos, quando, a todo o custo, se quer deixar o nome, a data e mais não sei o quê, nas pirâmides de cimento de cada localidade (só ali não fica mausoléu por impossiblidade). Ou quando o espírito iletrado, degeneradamente burguês, confunde um vitral com os azulejos de uma casa de banho.

 A iniciativa individual, legítima de quem dirige e gere, é uma inteligência que ainda se confunde com o dever de gerir prioritariamente a inteligência do cidadão. Mas nisso sempre houve um obstáculo, esse que o vate Luís de Camões, sabendo dos ventos de todos os tempos, bem conhecia ao escrever a última palavra de «Os Lusíadas».

Seja qual for o poder, de uma pequena comunidade ou mais centralizado, seja o de um mandato local de uns poucos anos, ou o de períodos históricos dilatados, ou corrigimos os vícios (de casa pequena de quando o império era grande) e agimos em consonância entre a epiderme de fazer transpirar e o anímico do «tudo vale a pena», ou a alternância de poder é sempre a mesma fotocópia mais ou menos desbotada.

 
© Eduardo Aroso, 30-9-2013       

 

 

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