sábado, 14 de fevereiro de 2015

CRÓNICA (SAZONAL) DOS FINS DO SÉCULO XXI
 A «Comissão do Beijo» apreciou milhares de beijos, perante um público eufórico, só comparável ao das grandes finais de futebol, e perante as câmaras de televisão e ainda dezenas de fotógrafos. Diz-se que, naquele tempo, só coisas assim despertavam as pessoas da melancolia social e política portuguesa. Foi eleito então o par que esteve mais tempo com as bocas coladas, presumindo nós que o beijo já tinha sido dado (uns segundos bastam) e apenas estavam ali a permutar hormonas e não se sabe que mais.
 Alguns psicólogos da época – os que geralmente iam aos programas televisivos da manhã – consideraram isso como a intensidade máxima do amor, tendo alguns elaborado até uma espécie de escala do tipo da que existia para medir imediatamente a hemoglobina dos diabéticos. O governo de então apressou-se a apoiar a iniciativa como factor de estabilização e até sustentabilidade social (curiosamente o que não disse nada sobre o assunto foi o mais alto magistrado da nação, designado, nesse tempo, por Presidente da República). O governo foi generoso e aos casais e os que de qualquer modo coabitavam, de idades abaixo de 30 anos e acima de 10, fez um desconto no IRS desse ano de 0,2%. Imagine-se que até a imprensa internacional deu eco. Aliás, foi a própria ministra das finanças que veio sublinhar que as boas práticas em Portugal devem ser transparentes e vistas por quem quer que seja, e não às escondidas com sacos azuis.   
O ministro da educação, desse ano da graça de dois mil e quinze, chegou a recomendar a prática nas escolas do beijo demorado (fotografado e filmado, pois a História faz-se com documentos!), como uma pedagogia eficaz contra actos bélicos que estalavam em todo o mundo. Um comentador televisivo disse que era uma prática com boa alavancagem, isto é dar-se nas bocas, contando que não se tirasse dos bolsos! Um deles, mais utópico, via nesse dar a boca, durante minutos e horas, o gesto para, no futuro, tapar as bocas de todos os esfomeados do mundo, acabando assim a pobreza, reafirmando que estes beijos filmados eram, portanto, um bom exemplo. Nesse dia cantou-se o hino nacional e os cinemas abriram as suas portas para quem quisesse ver gratuitamente «As 50 sombras de Grey».
Eduardo Aroso (em viagem no espaço e no tempo) ©  

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