O (DES)VENTRE DA CIDADE
Dizer que a cidade tem sido desventrada não é grande exagero,
pois não dá razão (antes desse) de um modo positivo ao verso de Camões
«mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», que se tornaram frouxas para
mudanças. É certo que a cidade conserva
os ossos, sejam os do Fundador da Nação, sejam os do crânio herdeiro do «homo
sapiens», que se conserva no cimo da colina onde Minerva, ora sopra inspiração,
ora volta para férias no Mediterrâneo.
Os ossos, como é sabido, são os elementos do corpo físico mais
difíceis de desintegrar; e ainda bem, porque a facilidade com que os sucessivos
alcaides têm removido muitas vísceras da cidade, se o pudessem fazer quanto aos
ossos, a urbe de séculos e séculos de História já não existiria, ou seria uma
espécie de cidade da co-incineração como quis o tal personagem cujo nome ilude
a designação de «homo sapiens». A cidade
vai vivendo, substituindo os órgãos naturais por outros de plástico, ou
plastificados, e até – pasme-se – com um patético gosto por materiais de
cortiça ou latas de conserva, nas artérias do corpo citadino, material que
quase chega a entupir as vias. É óbvio que estas obstruções culturais ao perfil
que a cidade deveria ter, não se resolvem com as cheias do Mondego que, com
excepção de eventuais estragos, limpam tudo por onde passam.
Resta a peculiar atmosfera psíquica e anímica da urbe que, tal
como os ossos, é sempre mais perene, constituindo uma espécie de réplica desses
elementos duros. Inevitável é a pergunta: e ainda há então na cidade um «núcleo
duro»? Uma coisa parece certa: temos que estar com atenção aos ossos da cidade
e à extracção de certas vísceras… para que não seja embalsamada de vez.
Coimbra, 2-1-2020
Eduardo Aroso
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