quinta-feira, 11 de agosto de 2022

 

 GOSTO DOS POETAS

 Que escrevem sobre (de) si, e não para o gosto dos críticos literários. Dos poetas que não têm a ilusão de serem “cavalos de fogo” de vanguardas, porque esses não se importam com isso. Rejubilo com aqueles que escrevem de tal modo que quando sentem com o fígado, não insinuam dizer que é no intelecto que se alinham os versos. E também dos que sabem bem que até Fernando Pessoa escreveu as chamadas redondilhas ou quadras populares. Louvo os poetas que não são apenas da sua época, mas neles - fado bem difícil ‑ atravessam todos os tempos. Gosto dos poetas que intuem os limites na sua ilimitada criação, os limites onde tudo cabe, desde a bosta de boi à coroa de louros. Gosto, enfim, dos poetas que, antes da compreensão, me fazem estremecer.

 Eduardo Aroso©

Agosto 2022

terça-feira, 5 de julho de 2022

A RAINHA SANTA ISABEL E A MENSAGEM DE FERNANDO PESSOA

 

A Rainha Santa Isabel e Inês de Castro, duas figuras femininas que, apesar de tão marcantes e representarem arquétipos diferentes se tornaram míticas no verdadeiro sentido da palavra (pelas razões que conhecemos) não constam na Mensagem pessoana. As razões cabem apenas ao poeta, que não as explicitou (não tendo que o fazer), pelo que somente as podemos conjecturar. Todavia, o poeta glosa D. Tareja (Teresa) mãe de D. Afonso Henriques e D. Filipa de Lencastre mãe da Ínclita Geração. Ambas estão respectivamente na raiz da 1ª e da 2ª dinastias, do Portugal-matriz, interrompido em Alcácer-Quibir, logo dominado por Espanha e depois entrando numa espécie de “clandestinidade” sobretudo na segunda metade da 4ª dinastia e na subsequente república. 

 O facto das referidas mães constituírem pontos cardinais dinásticos, pode estar (ou não) na base da célebre carta que Pessoa endereçou ao Conde de Keyserling que, apesar da sua cultura, veio a Portugal (Pessoa parece tê-lo ouvido em Lisboa), dizer o que não somos, o que não fomos e muito menos o que podemos (poderíamos) ser. Na sua obra História Secreta de Portugal, António Telmo vê em Fernando Pessoa o «Rectificador» de muita coisa. Uma leitura atenta descobre como um livro ao mesmo tempo que oculta também pode desocultar um sentido que, necessariamente tomando razões fundacionais, nos pode fazer entender melhor que o óbvio muitas vezes não é o que parece óbvio.

Seja como for tudo isto, as devidas honras (e devoção) que prestamos à Rainha Santa que instituiu oficialmente o Culto do Espírito Santo em Portugal, que transformou rosas em moedas de oiro para pagar aos operários da Igreja de Alenquer, não deixa de estar num admirável contraponto com a (feliz) iniciativa de, neste dias, haver uma Guarda de Honra no Panteão Nacional, Igreja Santa Cruz de Coimbra. Quanto à Guarda de Honra, que existe todo o ano na Igreja de Santa Clara, é feita por Anjos.

 Eduardo Aroso ©

4-7-2022

Festas da Padroeira da Cidade de Coimbra

 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

 

A Isaura F. E.

(na memória atravessando

a matéria e o tempo)

 

Até quando na ocidental praia

respiramos ainda o sonho rarefeito

pelo zimbório aberto da aventura?

Oh, triste contentamento descansar

tão-só na tatuagem das algas,

pois nada pode ser demanda

pela descarbonização das areias.

 

Eduardo Aroso ©

Solstício de Verão

Junho 2022

 

domingo, 12 de junho de 2022

 

 

A FAKE-NEW DA MORTE DE FERNANDO PESSOA

 

Dizem que foi em Novembro no ano 35.

Sem televisão, anunciaram-na nos jornais.

Mais tarde levaram os ossos para os Jerónimos

Ou… talvez de um anónimo entre os mortais.

 

Anos depois vieram as cátedras pomposas

Como se fossem metódicos anatomistas

Dissecando do poeta as múltiplas personalidades

Quando era apenas uma grande alma de largas vistas.

 

O Fernando, antes de tudo, uma excelente Pessoa,

Que sabia inglês para dar, emprestar ou vender,

Disse-me aqui ao ouvido que isso da sua morte

Foi quando as fake-news começaram a aparecer…

 

Eduardo Aroso©

Véspera de 13-6-2022

 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

 

LUÍS DE CAMÕES – ENTRE A FORÇA DA GRAVIDADE E A FORÇA CELESTE

 

«E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando»

(Os Lusíadas, Canto I)

 

A gravidade é uma das leis da física que mais facilmente entendemos desde os bancos da escola. A invenção do avião, não podendo anular essa lei, trouxe contudo a possibilidade de nós escaparmos, por mais ou menos tempo, a essa força que nos puxa para baixo. Segundo a ficção científica – que lentamente sempre se vai tornando realidade – é possível viver cada vez mais tempo no espaço.

Quando Camões se referiu à libertação da lei da Morte, apontava a possibilidade do glorioso caminho que, num futuro talvez distante, toda a humanidade pode trilhar. É evidente que não se trata de viver eternamente no corpo, mas da construção por cada um de uma espécie de “corpo vital de memória”. Construção ou libertação ultrapassando a não-memória ou a má-memória. Milhares de seres humanos morrem diariamente ainda nestas condições não realizadas. Raros se elevam, no tempo, nesse corpo ou auréola. Há também os que fazem batota, ou seja, os Ícaros que julgam ter asas (ou as compram na contrafação), que logo caem no chão derretidas pelo sol da verdade, no julgamento da História. Nestes últimos tempos, nas comemorações do 10 de Junho da velha Casa Lusitana, muitos Ícaros têm exibido a sua lapela, mas, ao invés dos aviões, não criaram propulsão. Ícaro caiu no mar Egeu; os nossos caem na costa atlântica ou mesmo em terra. As medalhas podem ficar. As asas, por serem de cera, é que se vão derretendo…

 10 de Junho

Eduardo Aroso ©

sexta-feira, 15 de abril de 2022

 

PIETÀ

 

Senhora que estais no corpo macerado

de todas as mães deixando as suas casas,

crucificadas também pelos caminhos

árduos do desespero fugindo dos algozes.

Se os vossos filhos ficam, lá fica a vossa dor,

se vão convosco vai a súbita incerteza

embebida em vinagre por pecados quais

dados em amargura neste tempo absurdo.

Pietà! Pietà! Vossos braços que tudo amparam

e se alongam tocando a vida e a morte.

Lágrimas assistindo impávidas na cruz

ao derradeiro calvário da civilização.

Latejam as horas como cravos

que vêm ao vosso regaço macerado

na espera ardente por um grito de aleluia!

 

Eduardo Aroso ©

Páscoa de 2022

 

quinta-feira, 14 de abril de 2022

 

Se Leonardo da Vinci captou, interiormente, o arquétipo da Última Ceia, vemos que todos estão do mesmo lado. Este pormenor é susceptível de ser bastante elucidativo. (1) Pese embora a chamada «doutrina social da Igreja», tema que para o presente caso não importa, ao contrário do que se geralmente se pensa de João XXIII, a reforma de “liberalização” da Igreja levada a cabo no seu pontificado, se trouxe comodidade à assembleia de fiéis, veio barrar o aspecto esotérico e iniciático da praxis cristã. Se não acabou, dificultou e dificulta cada vez mais essa via ao cristão, pois, por exemplo, o facto do sacerdote se posicionar voltado para a assembleia, obriga-o a estar de costas para o oriente, ponto cardeal para onde TODOS se voltavam, aliás a orientação tradicional dos templos cristãos. Fica porém a dúvida se a posição do sacerdote perante a assembleia teria (tem), ou não, como objectivo personificar nele a autoridade papal. Depois do Vaticano II continuará a haver, portanto, mais extremadas (mas não incompatíveis) a «Igreja de Pedro» e a «Igreja de João».

Um alto funcionário do Egipto disse, há já algumas décadas, que se o Islão tem reforma, então já não é o Islão, o que, evidentemente, justifica a existência do sufismo, como aliás a cabala no Judaísmo. Não se pode dizer o mesmo de algo no Cristianismo?

(1) Há, como é sabido, uma disposição outra que é a da Távola Redonda que, para o caso, se insere noutro contexto.

Eduardo Aroso©

Semana Santa, 2022